Módulo 3: Dogmática 4 | “A Cruz sobre o nada”


    Conclusão da citação de RATZINGER (leia a primeira parte / segunda parte)*


Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada; um madeiro desatado parece sustê-lo, e têm-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele; esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.


    O quadro apresenta, além disso, uma dimensão maior que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele que se considera descrente, que deu as costas a Deus porque acha que esperar não é para ele, mas quer possuir o que é atingível… como se este pudesse estar em outra parte além de Deus.


    É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios, até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado a imagem, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua Fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua Fé.


    Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista, que já há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente “certo”… jamais o abandonará a secreta insegurança: estará o positivismo realmente com a última palavra?


    O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como sendo o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe?, – a Fé a represente, no fim, a realidade. Portanto, como o crente se vê ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ter nela sua perene provação, assim a Fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo.


    Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem quiser fugir das incertezas da Fé, terá de experimentar as incertezas da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá dizer sem sombra de dúvida que a Fé não se cobre com a Verdade. Somente na recusa da Fé revela-se a irrecusabilidade da Fé.


    Talvez convenha, neste ponto, citar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana:


Um dos “iluministas”, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi à sua procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da Fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: ‘E, contudo, talvez seja verdade’. O sábio, em vão, tentou fincar pé, defendendo sua dignidade própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspecto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se para ele e lhe disse, sereno: ‘Meu filho, os grandes da Torá, com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu Reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade’. O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível ‘talvez’, a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer resistência.[1]


    Apesar da imagem estranha, temos aqui uma descrição muito precisa da situação do homem frente ao “problema Deus”. Ninguém é capaz de servir aos outros um “cardápio”, um manual sobre Deus e o seu Reino, e nem o próprio crente pode ter algo assim para si mesmo. Mas, por mais que se possa querer justificar a descrença com isso, permanece de pé o horror daquele “talvez seja verdade”. O “talvez” representa o inevitável ataque do qual é impossível escapar, o qual é preciso experimentar; com a recusa, aparece a irrecusabilidade da Fé. Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da Fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar totalmente da Fé. Para um, a Fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida.


    Fim da citação de RATZINGER


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* RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.

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Nota:
[1] M. BUBER, Werke III, Munique-Heidelberg, 1963, 348.

Módulo 3: Dogmática 3 | A via da incerteza


        Continuação da citação de RATZINGER (leia a primeira parte)*


Santa Teresa de Lisieux


Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar, dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, geralmente [nos tempos tranquilos], lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux (na imagem acima, em uma fotografia clássica belamente colorizada), esta amável santinha aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeita e minuciosamente marcada pela Fé na Igreja que o mundo invisível se tornara para ela uma parcela do cotidiano; ou antes, tornara-se seu próprio cotidiano, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Santa Teresinha, “religião” era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas, justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu calvário. Manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona, nas novas edições autênticas e literais da sua obra.


    Assim, por exemplo, quando ela afirma: “Acossam-me as reflexões dos piores materialistas”, é porque sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a Fé; o sentimento mesmo da Fé lhe parece desaparecido; ela se vê transportada para dentro da “pele dos pecadores”[1].


    Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a si –, sob a crosta firme das convenções que sustentam a Fé. Em tal situação, não está mais em jogo apenas isto ou aquilo – a assunção de Maria ou não; a confissão desse ou daquele modo –, coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto se trata aí realmente do todo, do conjunto, de tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa: somente o abismo faminto e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares.



Paul Claudel


Paul Claudel evoca, em um quadro grandioso e convincente, essa situação do crente, na abertura do seu “Soulier de Satin”. Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como um náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano[2]. O drama se inicia com o seu último monólogo: “Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus Mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus Mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a Ti do que estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de Ti. E assim realmente estou preso à Cruz; e a Cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar”[3].


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* RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.

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Notas:
[1] Conforme a síntese informativa do periódico Herder korrespondenz nº 7 (1962/3, 561-565 sob o título “Die echten Texte der kleinen heiligen Thérese” (Textos autênticos de Sta. Teresinha). Estas citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, “La table des pécheurs”, em Dieu vivant nº 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições de A. COMBES, principalmente “Le probleme de I’ ‘Histoire d’une âme’ et des ‘Oeuvres completes de Ste. Thérese de Lisieux’”, Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, “Theresia von Lisieux”, em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104. Em “Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission”, publicado pela editora Lar Católico sob o título “Uma Santa na era atômica” (1961), podem-se conferir os conceitos aqui abordados, sobretudo às pág.s 125; 138 e seguintes e 174.

[2] O que evoca impressionantemente o texto bíblico do Livro da Sabedoria (10,4), tão importante para a Teologia da Cruz na Igreja antiga: “À terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho desprezível”. Sobre esse texto na Teologia Patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547.

[3] Conf. o texto alemão de H. U. Von BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16, apud RATZINGER.

Módulo 3: Dogmática 2 | Situação da Fé no mundo


É verdade – e somos obrigados a reconhecê-la – que as verdades reveladas são muitas vezes obscuras à razão e à experiência humanas; mas “a certeza dada pela Luz divina é maior do que a dada pela luz da razão natural”[1], e é por isso que vemos que as pessoas de Fé se apegam ainda mais à Religião quando sofrem e são expostas a grandes provações, quando seria de se esperar que naturalmente ocorresse o contrário.


    Se a Fé procura compreender-se[2], como já vimos (é inerente à Fé o desejo de conhecer melhor Aquele em Quem se crê, de compreender melhor o que Ele revelou, especialmente porque o seu primeiro Mandamento é amá-lo, e amá-lo sobre todas as coisas), um conhecimento mais profundo exigirá, por sua vez, uma Fé maior. A Graça da Fé abre “os olhos do coração” (cf. Ef 1, 18) para uma inteligência viva dos conteúdos da Revelação, isto é, da realidade dos desígnios de Deus e dos mistérios da própria Fé. Assim, conforme diz Santo Agostinho, nós cremos para compreender e compreendemos para crer melhor[3].


    É realmente muito importante saber – especialmente para aqueles de temperamento mais racional –, que a verdadeira Fé, embora se localize acima da razão e a supere, nunca estará realmente em desacordo com esta. Pois a mesma Inteligência divina que revela seus Mistérios e concede a própria Fé, também acende no espírito humano a luz da razão, e é soberana sobre toda capacidade e ciência humanas. A Verdade divina não poderá jamais contradizer as verdades naturais que o homem é capaz de apreender por meio de suas próprias capacidades naturais[4].


    Assim, a busca científica honesta, em todas as áreas do conhecimento humano, se praticada segundo as normas da moral, jamais se colocará em oposição à verdadeira Fé: pois tanto as realidades mundanas quanto as sobrenaturais têm a sua origem em um só e mesmo Criador e Conservador de todas as coisas.


    Embora pudéssemos sensatamente conjecturar que a responsabilidade de crer, isto é, de aderir à Fé, juntamente com as responsabilidades e obrigações que serão as suas consequências sejam nossas (Deus quer e espera o nosso ‘sim’), não obstante, tanto na sua concretização inicial como na sua manutenção, a Fé depende inteiramente de Deus, assim como a nossa salvação.


    Vale citar e reproduzir neste ponto, para a nossa reflexão e complemento, o trecho inicial de uma obra referencial do teólogo[5], então Cardeal, Ratzinger:


Quem tentar falar hoje sobre o problema da Fé[6] cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica, por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou em seu livro “A Cidade do Homem”[7].


A estória conta como, na Dinamarca, um circo ambulante pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço – já caracterizado para a sua apresentação –, em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O palhaço, então, corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar o incêndio do circo. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Em vão, tenta conjurar os homens, e esclarecer de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está em chamas. Mas o seu esforço apenas aumenta mais a hilaridade da cena, até que, por fim, o fogo alcança de fato a aldeia, tornando tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se vítimas da tragédia…


Cox conta essa estória como análoga à situação do teólogo dos nossos tempos, e vê a figura do teólogo no palhaço, incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupa de palhaço, seja medieval ou de outro tempo passado qualquer, o teólogo não é levado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado já pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e o seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um palhaço: já se adivinha qual o assunto da sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso, pode ser ouvido sossegadamente [mesmo que anuncie uma tragédia iminente, tentando evitá-la], sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma.


Sem dúvida existe algo de angustiante e tal quadro, algo da angustiada realidade em que a Teologia e a formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da Teologia como assunto sério da vida humana.


Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja –, ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, têm-se a impressão de que o palhaço, isto é, o Teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões aos quais acorre, que são os homens sem Fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes dos fatos, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem e retirar a maquiagem, e tudo estaria em ordem.


Será a questão tão simples? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento (no caso uma renovação, uma atualização do modus operandi dos teólogos), uma mera retirada da maquiagem e uma reformulação em termos de linguagem, para que se adeque ao costume do mundo, ou de um “cristianismo arreligioso”[8] para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram, animados, e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos?


Vejo-me compelido a afirmar que a Teologia, desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a Fé no meio de homens mergulhados na vida [materialista] moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de algum antigo sarcófago, que penetrou no mundo atual revestido de trajes e pensamentos da Antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a Fé exercer bastante autocrítica, em breve notará que o problema não se resume apenas às formas, a uma crise que diga respeito apenas ao mero revestimento com que a Teologia se apresenta.


Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança que é inerente à própria Fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua vontade de crer. Por isso, quem tentar honestamente prestar contas da Fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas[9].


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[1] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II. q. 171, 5, 3um: Ed. Leon. 10, 373.


[2] Santo Anselmo da Cantuária, Proslogion. Prooemium: Opera Omnia, ed. F. S. Schmitt. v. 1, Edimburgo 1946, p. 94.


[3] Sermão 43, 7, 9: CCL 41. 512 (PL 38. 258).


[4] Concílio Vaticano I, Const. dogm. Dei Filius, c. 4: DS 3017.


[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.


[6] Ratzinger não usa inicial maiúscula para se referir à verdadeira Fé dos cristãos, mas para efeito de manter o padrão adotado neste curso, optamos em adaptar assim o texto.


[7] H. COX, The Secular City. Trad. “A cidade do Homem”, Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1968, p. 270.


[8] Pois o mundo rejeita antecipadamente qualquer coisa que lhe seja apresentada como proposta religiosa e/ou vinda de uma instituição religiosa formal, especialmente àquelas que partem da bimilenar Igreja Católica. Se hoje os racionalistas/materialistas parecem amar o Papa Francisco, é justamente porque este – de modo nunca feito por nenhum de seus predecessores –, comunica-se usando a linguagem do mundo, despojando-se (inclusive literalmente) das vestes de Príncipe dos Apóstolos e Vigário de Cristo na Terra. Suprema contradição: para pregar a Cristo seria necessário disfarçar ou esconder todo sinal visível que faça lembrar o mesmo Cristo? Para que a Igreja subsista, será preciso ocultá-la, despojá-la de tudo o que sempre a caracterizou enquanto tal?


[9] Por razões que não são difíceis de entender, Ratzinger foi e continua sendo duramente criticado pelos teólogos tradicionalistas/conservadores por ter escrito tais palavras. A partir deste ponto, ele avançará cada vez mais audaciosamente nessa mesma perigosa direção, mostrando que sempre esteve bem longe de ser o clérigo tradicionalista que muitos (os que não se encorajam a estudar sua densa obra) imaginam. Seja como for, a análise dos seus textos terá sempre valia para aqueles católicos bem maduros na Fé, se considerarem as profundíssimas reflexões a que nos remetem e que, ao fim, servirão para nos fortalecer muito mais solidamente na Fé.

Módulo 3: Dogmática 1 | A aceitação da Fé



Vimos no módulo anterior que Deus falou à humanidade por meio da Revelação, curvando-se à nossa baixeza por amor de nós e oferecendo-nos, assim, um caminho seguro para a salvação. Diante dessa fala de Deus ao homem, qual será a nossa resposta? Recusar? Protelar? Tais seriam atitudes de suma injúria (porque injúria contra Deus) e suma loucura. Ou deveríamos buscar o discurso lógico, arquitetar raciocínios, tentar “provar” o que foi dito, assim como se faz nas ciências exatas? Também não. Cabe-nos apenas ouvir, pois “a Fé provém d[o ouvir]a pregação, e a pregação pela Palavra de Cristo” (Rm 10, 17). E, tendo ouvido, aceitar filialmente, dizer “sim” ao Deus que se digna comunicar a nós a sua Verdade.

    A Fé, enquanto tal, não discorre nem argumenta: é um ato simples e direto de aceitação, de aquiescência. Nem basta aceitar como mera opinião, como conjectura; é necessário aceitar como afirmação da Verdade, com certeza absoluta. Ter Fé não consiste, por exemplo, em conceber somente a Trindade, ou exclusivamente a Encarnação, mas antes em afirmar categoricamente, na dimensão objetiva, nesse caso, que Deus é Uno e Trino e que o Verbo de fato se fez carne. Tudo isso é certo como em matemática é certo que 2+2=4 ou como a própria existência, aqui e agora mesmo, destas letras escritas. A diferença consiste em que, no caso dos fatos matemáticos, estes são frutos da evidência racional; no caso da constatação das palavras escritas, pela visão, trata-se de evidência experimental – ambas são conquistas nossas – enquanto no caso da Fé, a evidência é substituída pela palavra de uma Testemunha – e essa Testemunha é Deus. Logo, não podemos inventar “verdades” religiosas, senão apenas aceitá-las.

    Por isso, em vez de uma ciência filha da observação e da demonstração, temos a Fé: o assentimento firme a uma afirmação em virtude da absoluta idoneidade de Quem afirma. Assim como a criança crê na palavra dos pais e o bom discípulo no ensinamento do mestre, de modo semelhante temos a Fé no que Deus nos ensina. Sem dúvida, o testemunho humano é em si falível, mas a verdadeira Religião funda-se sobre o testemunho da mesma infalibilidade: a Verdade absoluta.

    Ao cientista e ao filósofo que estranham a nossa docilidade de crentes, a nossa aceitação incondicional de realidades que não vemos nem demonstramos empiricamente, respondemos que nada há mais razoável, porque, sobre qualquer outra, a Palavra de Deus é digna de ser crida: “Se aceitamos o testemunho de homens, o Testemunho de Deus é maior” (1Jo 5, 9).

    Padre Penido, autor da obra sobre a qual se baseia esta etapa inicial de nossa formação, com essas simples conclusões encerra a questão sobre a justificação primordial da Fé. Todavia, sabemos bem que sete décadas se passaram desde a sua escrita, e embora a Sã Doutrina seja imutável, o pensamento do homem transformou-se radicalmente desde então. Dificilmente bastará dizer ao cristão de hoje que as sagradas Escrituras, a santa Tradição e o sagrado Magistério devem ser cridos e obedecidos, simplesmente, porque provém de Deus, ou porque Quem os autentica é Deus.

    A Fé continua sendo um dom do Alto, isso jamais mudará. Para quem a possui, nenhuma prova é necessária, e para quem não a tem, nenhuma prova será possível ou suficiente, como tão inspiradamente sentenciou Chase[1], sintetizando o pensamento de Santo Tomás de Aquino. Chegamos aqui a um grande mistério da Religião, sobre o qual, em um curso de Teologia que contemporaneamente se justifique, será preciso aprofundar mais e melhor.

    Gratuitamente é que fostes salvos mediante a Fé”, ensinou o Apóstolo: “Isto não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus” (Ef 2,8).

    Sim, os racionalistas/materialistas estranham, como sempre estranharam e continuarão estranhando, enquanto houver mundo, o fato de crermos e aceitarmos os dados da Revelação sem questionamento, aderindo ao chamado de Deus como se no interior de nossas caixas cranianas não houvessem cérebros. Ora acabamos de ver que o cristão não crê porque as verdades reveladas lhe apareçam inteligíveis à luz natural de sua razão, mas pela Autoridade do próprio Deus que a revela – pois Deus não se engana e nem poderia nos enganar[2]. Todavia essa explicação não aplaca a questão às mentes dos não cristãos, já que não podemos ver nem ouvir Deus a nos atestar as coisas verdadeiras e a diferenciá-las das falsidades.

    Assim, para que o nosso passo de Fé fosse conforme a razão, Deus concedeu-nos “que os auxílios interiores do Espírito Santo fossem acompanhados de provas exteriores da sua Revelação”[3]. Por isso Nosso Senhor Jesus Cristo fez milagres, e n’Ele também muitos dos seus Santos, e por isso tivemos e temos as profecias, os místicos, os sinais, a propagação e a preservação da Igreja pelos séculos, bem como a sua fecundidade e estabilidade, superando todos os obstáculos – humanamente intransponíveis – que foram se colocando no seu caminho no correr da História, como a perseguição de grandes impérios e tiranos poderosos. Estes e outros “são sinais certos da Revelação, adaptados à inteligência de todos”.

    As aparições de Nossa Senhora e de grandes Santos confirmadas pela Igreja, os Milagres Eucarísticos, a Fé dos simples que não esmorece e nem se apaga mesmo contra todas as tentativas de tantas heresias e ideologias contrárias, isso desde a sua origem: temos aí sólidos motivos e confirmações de credibilidade, os quais demonstram que o assentimento da Fé não é, “de modo algum, um movimento cego do espírito”.


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[1] CHASE, Stuart. Economista, autor e pensador norte-americano (1888 – 1985): “For those who believe, no proof is necessary. For those who don’t believe, no proof is possible”, apud LEATHERS, Helen; CAMPKIN, Diane. Help! I Think I Might Be Psychic, London: Spreading the Magic, 2008, p.68.
[2] Concílio Vaticano I, Const. dogm. Dei Filius. c.3: DS 3008.
[3] Ibidem, DS 3009.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem, DS 3010.

Biografia do Módulo 2

 

BIBLIOGRAFIA utilizada neste volume e recomendada*

PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação teológica, vol I: o Mistério da Igreja, 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1956.

TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística, 6ª ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1961.

FABER, Frederick William. Progresso na vida espiritual. São Paulo: Cultor de Livros, 2019**.


ÁVILA, Santa Teresa de. O Castelo Interior. Curitiba: VSFortes, 2016.

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Lafonte, 2017.

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Das obras aqui listadas, as primeiras três formam a base dos conteúdos deste volume.
** A edição original é do ano 1854.

Módulo 2: Anexo | Provas da existência de Deus segundo Descartes*

1ª Prova: à priori, pela simples consideração de ideia do Ser perfeito. A prova consiste em mostrar que, porque existe em nós a simples ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta que esse ser necessariamente tem que existir. Ora o ser humano não é capaz de pensar em nada que já não exista, e mesmo as realidades e seres imaginários mais fantásticos são sempre ancoradas em junções feitas a partir da realidade observável. Ex.: uma sereia, que não existe, é a junção de um peixe e de uma mulher, que existem. Nada podemos “criar” a partir do nada, mesmo em nossas imaginações.

2ª Prova: à posteriori, pela causalidade das ideias. Descartes conclui que Deus existe pelo fato de a sua ideia existir em nós. A prova consiste agora em mostrar que, porque possuímos a ideia de Deus como Ser perfeitíssimo, somos levados a concluir que esse ser efetivamente existe como causa da nossa ideia da sua perfeição. De fato, como poderíamos nós ter a ideia de perfeição, se somos seres imperfeitos e se jamais fomos expostos a nada que seja, de fato e efetivamente, perfeito? Como poderia o menos perfeito ser, assim, causa do mais perfeito? Deste modo, conclui, já que nenhum homem possui tais perfeições, deve existir algum ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de perfeição. Esse ser é Deus.

3ª Prova: à posteriori, baseada na contingência do espírito. Descartes demonstra aqui a existência de Deus a partir do fato de que não nos podemos conservar a nós próprios. Se não podemos garantir a nossa existência (e permanência), mas apesar disso existimos (e permanecemos existindo), é porque alguém nos pode garantir essa existência. Esse alguém maior é Deus.


* Por Joana Filipa Rodrigues, Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Secretária no Centro Interdisciplinar de Relações Internacionais e Tesoureira da Comissão do Carro da Licenciatura em Relações Internacionais de 2015-2018. 

Módulo 2: Ascética e Mística 4 (prática) | Viver e crescer interiormente

O exercício que sugerimos visa a contemplação amorosa de Deus, que faz surgir na alma a mais profunda humildade. É fundamentado no método descrito na obra “A nuvem do não saber”, clássico da espiritualidade cristã que é um tratado sobre a contemplação, escrito por um monge, místico e teólogo anônimo do século XIV. Especula-se que nosso Doutor Místico, São João da Cruz, teve contato com essa obra, tendo sido influenciado por ela, assim muitos autores seus contemporâneos[1]. Dizemos que é uma meditação que visa a contemplação porque, segundo o Catecismo da Igreja Católica (CIC) e a sagrada Tradição, essas duas coisas, embora semelhantes, têm certas diferenças, a saber: A meditação é sobretudo uma busca pela qual o espírito procura compreender a vida cristã, para aderir e corresponder ao que Deus quer; exige atenção disciplinada (CIC 2705). A contemplação é (no dizer de Santa Teresa de Jesus) “nada mais que um compartilhamento próximo entre amigos; significa dedicar tempo para ficar a sós com Ele, que sabemos que nos ama”; é “a expressão simples do mistério da oração, um olhar de Fé fixo em Jesus, um amor silencioso. Realiza a união com a oração de Cristo, na medida em que nos faz participar no seu Mistério” (CIC 2724).

Assim, de certo modo, podemos dizer que a contemplação é o elevar-se da meditação, é o próximo degrau depois desta. Por essa razão, a meditação que sugerimos será executada com perfeição se, a partir dela, o meditante alcançar o estado contemplativo.

Segue o passo a passo.

Preparação

a) O primeiríssimo preparativo é estar em estado de graça, isto é, ter-se confessado bem e cumprido a devida penitência. Mas também é possível fazer esta prática sem essa condição, desde que se faça antes ao menos um breve exame de consciência e um ato de contrição[2].

b) Escolher um local solitário, silencioso e tranquilo, em que poderá permanecer sem ser incomodado pelo período de tempo que for predeterminado. Aconselha-se começar com um tempo em torno de 15 minutos de prática, o que já é suficiente, podendo ser aumentado caso se queira persistir na prática, tornando-a um maravilhoso hábito diário, ou que seja feito sempre a intervalos regulares. A longo prazo, não há limites de tempo rígidos, nem para mais e nem para menos. Poder-se-há meditar/contemplar por
um minuto ou por várias horas seguidas, desde que se saiba fazê-lo bem.

c) Colocar-se sentado, tranquilamente, de modo que seja confortável e cuja posição não vá incomodar depois do tempo previsto, para que não interfira no estado contemplativo que se pretende alcançar.

d) Peça que alguém o chame quando terminar o tempo predeterminado para a prática ou, melhor do que isso, use algum despertador ou alarme previamente programado, para que sua atenção não seja desviada pela questão do tempo, que deve ser completamente esquecido (o lugar para onde queremos ir não é de modo algum afetado pelo correr do tempo).

A Oração preparatória

Este “degrau” é sumamente necessário. Reze suplicando a Deus Nosso Senhor pela graça para que todas as suas intenções e pensamentos sejam puramente ordenados para serviço e louvor de sua divina Majestade, segundo a sua santa Vontade. Esta oração deve ser feita com fé e confiança e com palavras próprias, sendo obrigatório citar o Santo Nome de Jesus, e deve ser precedida por uma récita da Ave Maria e do Pai Nosso. Deve-se pedir o auxílio de Nossa Senhora e pode-se pedir o auxílio do Anjo da
Guarda e/ou do Santo pelo qual se tenha especial devoção. Isto deve ser feito até que uma calma e uma paz profundas tomem conta da mente e da alma do praticante. A partir daí, deve-se guardar um gentil e sereno silêncio.

Preâmbulo – domar a imaginação

Como preâmbulo para “entrar” na prática, pode-se usar um objeto de devoção, como um Crucifixo ou imagem do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria, ou ainda a pronúncia de uma palavra que se queira repetir mentalmente (ou em sussurro) para aquietar os pensamentos, como se faz na prática do Rosário, quando não devemos prestar atenção às récitas das Aves-Maria, e sim aos mistérios que se quer meditar. Essa palavra pode ser (é muito recomendado que seja) o Santo Nome Jesus, ou então alguma jaculatória calmante, como “Eu vos adoro e agradeço, ó Criador de todas as coisas”, ou um versículo bíblico que conforte, como os do Salmo 45: “Aquietai-vos e sabei que Eu Sou Deus” (Sl 45, 11); “Está conosco Jesus, o Senhor”; “Nosso Protetor é Deus” (Sl 45,12), ou ainda a citação do Magnificat de Maria Santíssima: “Meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46).

A prática em si

Toda prática santa e perfeita se traduz em coisa simples, como amar a Deus e ao próximo ou perdoar as ofensas recebidas. Sabendo que “uma só coisa é necessária”, simplesmente eleve seu coração, mente e alma para Deus, coloque-se aos pés de Cristo com Maria, irmã de Marta, e deixe que um grande impulso de amor o leve à adorá-lo com absoluta entrega e devoção, como se nada mais existisse ou importasse. Lembre-se que tudo, absolutamente tudo o que você possui, a começar pela própria vida, lhe foi dado por Ele, e que tudo, absolutamente tudo o que você deseja e tudo o que realmente precisa, vem d’Ele. Esqueça-se completamente de todas as coisas criadas, soterrando-as e apagando-as dos seus pensamentos: esta é uma parte essencial deste processo de elevação e união com Deus. Este processo é purificador e o fará crescer em virtude, mas não pense em nada disso agora. Apenas ame e adore Jesus, seu Salvador e Senhor, que quer salvá-lo(a) para a vida eterna e premiá-lo com imensas alegrias e consolações sem fim.

“Por que te preocupas e andas agitada por muitas coisas, se uma só coisa é
necessária? Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.”
(Lc 10,41s)


Permaneça neste estado meditativo/contemplativo pelo tempo predeterminado. Se você se distrair durante a prática e os seus pensamentos se desviarem em preocupações ou devaneios (isso deverá mesmo acontecer, nas primeiras tentativas), simplesmente esqueça-os, abandone-os e retome o foco na adoração do Senhor e em sua santa Presença. Com o tempo e a persistência, essas distrações como que “morrerão por inanição”. Se fizer tudo da maneira certa, logo desejará permanecer aí por muito mais tempo.

Encerramento

O alarme tocou, avisando que o tempo predeterminado acabou. Faça uma oração de agradecimento usando suas próprias palavras (é preferível) ou então diga esta:

Dou-vos graças, meu Deus, pelos bons propósitos, afetos e inspirações que me comunicastes nesta meditação. Peço-vos ajuda para os pôr em prática. Minha Mãe Imaculada, São José meu pai, meu santo Anjo da Guarda, sede meu auxílio e intercedei por mim. Amém.

Por fim, pode-se facultativamente anotar em uma folha de papel ou caderno, que deverá ser previamente providenciado, alguma observação que se queira, porque neste momento a mente estará aliviada, profundamente relaxada e apta a captar as boas inspirações que o Céu incessantemente nos envia. Alguma resposta ou compreensão que surgiu quando meditávamos, alguma resposta ou alguma iluminação que poderá ser depois esquecida, na agitação do cotidiano, poderá ser assim registrada
para ser depois relembrada.

Notas:

[1] Em “A nuvem do não-saber” explica-se que a superação do pecado é sempre fruto da Graça de Deus, que vem em auxílio da natureza. Unir-se a Deus, pois, é a única meta dos que buscam a contemplação; essa união é de amor e de acordo de vontades: a vontade humana alinha-se à Vontade de Deus e ocorre uma transformação benéfica profundíssima. Deve haver esforço da parte da pessoa: ela deve buscar esquecer tudo, tornar-se “cega” e eliminar todo desejo de saber (como que penetrar em uma nuvem de não-saber); sua única intenção e meta deve ser Deus; por isso, apenas Deus deve operar na inteligência e na vontade, nada mais. Na contemplação a alma não se detém nem mesmo em coisas boas, como as virtudes, e menos ainda nos vícios, pois esse estado exige tranquilidade total e disposição da alma para superar tudo em Deus. O autor orienta àqueles que buscam trilhar esse caminho, que primeiro onheçam-se a si mesmos, lutando para chegar a uma reta consciência de si, que é o que estamos sugerindo como prática espiritual neste ponto de nossa formação. Neste exercício se encontra e preserva a humildade, essa virtude necessária aos que desejam se unir a Deus (Ref.: Leonardo Henrique Agostinho, MSC Religioso da Congregação dos Missionários do Sagrado Coração).

[2] Para saber mais, caso necessário, acessar:
https://ofielcatolico.com.br/2019/10/sobre-contricao-perfeita.html

Módulo 2: Ascética e Mística 3 (prática) | Viver e crescer interiormente

Conhecer-se a si mesmo. Com base na direção espiritual do Padre F. W. Faber, C.O.


Vimos na aula anterior que o conhecimento do nosso próprio estado espiritual pode ser árduo e até arriscado. Isso porque, por um lado, pode causar sofrimento e desânimo saber o quanto estamos atrasados, e por outro pode provocar uma espécie de orgulho espiritual o saber que estamos indo razoavelmente bem. Por outro lado, é importante que tenhamos uma noção no tocante à condição da vida espiritual em que atualmente nos encontramos, porque essa consciência nos levará a adquirir a verdadeira humildade cristã. Sendo assim, o menor conhecimento que nos possa acalmar e edificar já será o bastante, porque é muito difícil procurar esse saber com retidão, e usá-lo com moderação. Não podemos, porém, dispensá-lo de todo, ainda que sua importância varie segundo a condição de cada indivíduo.


– Manual prático para a vida interior, Lição I –
Desenvolver e cultivar a virtude da Humildade


A humildade para nós se constitui exatamente nessa mais perfeita consciência – que evolui conforme nossas capacidades vão se aprimorando pela prática diária e constante –, da nossa condição decaída, das nossas capacidades limitadas e das nossas inclinações para o pecado e para os vícios. Sim, somos fracos; sim, somos todos escravos[1] de muitas grandes e pequenas coisas e também, muitas vezes, de outras pessoas, e somos escravos do dinheiro e de um sistema social que não escolhemos; sim, somos dependentes de muitas coisas alheias a nós mesmos; sim, somos incapazes, pelas nossas próprias forças, de alcançar uma evolução espiritual realmente importante. Mas aqui cabe abrir parênteses para esclarecer que a consciência de toda essa miséria não nos deve entristecer ou fazer surgir o desânimo. Ao contrário, devemos nos animar por saber que – justamente quando aceitarmos profundamente a nossa condição miserável –, teremos então encontrado e tomado o precioso antídoto que fará mudar tudo. Que nos levará da condição de vermes rastejantes para a glória luminosa de homens e mulheres dignos, belos e fortes, cheios de esperança e de uma alegria que nunca cessa. Não é esta a descrição dos nossos grandes Santos? E como foi que eles chegaram onde chegaram, a não ser começando pela mais extrema humildade?

Há também aqueles que querem fazer da humildade necessária aos cristãos um caminho de radicalismo que em muitos casos não convém e que não é para todos. Ora nem a todos nós cabe uma opção radical como aquelas que foram feitas por almas imensas como São Francisco de Assis ou São Bento de Núrsia.

Assumir o caminho da santidade e dedicar-se ao crescimento interior/espiritual não significa que teremos que abrir mão de uma carreira, vestir trapos e dormir sobre o chão duro. Nem que será preciso viver uma vida só de abstinências e renúncias. Cada um de nós recebe do Alto uma missão, e com essa missão vem junto um dom ou um carisma, com as capacidades que nos serão necessárias para realizá-la. Só precisamos de vontade e de coragem. Isso não está necessariamente ligado à pobreza extrema ou a uma vida só de dores e sofrimentos. Tivemos muitos grandes santos que foram pessoas financeiramente ricas, a começar por São José de Arimateia, homem abastado e ilustre, bem posicionado socialmente, membro do Sinédrio, a mais elevada magistratura do povo hebraico na época. Pois foi este um destacado seguidor e amigo intimo do próprio Jesus Cristo. Por seu poder e influência, o Corpo Santo de Nosso Senhor foi dignamente sepultado, e não lançado em cova rasa como se fazia com os criminosos naquele tempo e lugar. Vemos então que Deus sabe usar de cada um que se coloque docilmente à disposição dos seus desígnios e que o ame sobre todas as coisas, e aqui está a resposta: aquele que ama mais ao dinheiro e àquilo que ele pode comprar do que a Deus, este é culpado de idolatria. Mas aquele que ama a Deus e é rico não peca. Antes, usará de sua condição para fazer o bem e saberá mortificar-se, abstendo-se das tentações que certamente sofrerá em maior medida do que as pessoas mais pobres.

Conhecer assim profundamente a verdade inescapável da nossa miséria e da nossa pequenez, sabendo que isso vem junto com a nossa própria finitude e a brevidade de nossas vidas, e manter essa consciência constantemente em mente, é o melhor caminho para a verdadeira humildade cristã, que nos fará lucrar muito espiritualmente e será a solução para muitos males da alma. Existem técnicas de meditação perfeitamente cristãs que nos levam ao autoconhecimento e consequentemente à humildade, mas isto será assunto para um estudo futuro. Todavia, já a partir deste módulo/fascículo, começaremos a realmente praticar o que estudamos, através de técnicas ortodoxas e seguras.

O pecado capital do orgulho

Assim, quando sei o quão pequeno, incapaz e recorrentemente infiel a Deus eu sou ou sempre tendo a ser, tanto mais humilde me torno. Quanto mais me conscientizo da minha total dependência do poder de Deus e da divina Providência para atingir qualquer resultado e, bem antes disso, até para continuar existindo saudável e capaz de apreender qualquer coisa, mais e mais aumenta a minha humildade. Pois é difícil imaginar pecado que não tenha a sua origem no maldito orgulho. O orgulho ou soberba é um pecado capital universal, também por ser natural para todos nós, herdeiros do Pecado original, e que cresce em nossos corações como a erva daninha que insiste em crescer num jardim, por mais bem cuidado que seja.

Na imaginação popular, os gatos têm sete (ou nove) vidas. Mas o pecado capital do orgulho tem milhões de vidas, ou vidas infinitas. Parece impossível matá-lo, exterminá-lo, acabar de uma vez com ele. Mesmo quando tentamos muito vencê-lo, sermos humildes e cultivar a modéstia em nossas vidas, ele volta a brotar, às vezes até mesmo daquilo que deveria destruí-lo, pois a grande contradição é esta: muitos sentem orgulho ou se ensoberbecem pela própria simplicidade(!). Gloriam-se por não ter vaidade ou por viver de um jeito simples, mas acusam àqueles que possuem valores diferentes dos seus de serem orgulhosos. O orgulho é geralmente um pecado inconsciente. Assim é que, muitas vezes, os mais orgulhosos são aqueles que pensam que não têm orgulho nenhum: gloriar-se da própria humildade é tomar um banho de orgulho.

Por instalar-se sem ser notado, é tão perigoso. Insistentemente, Nosso Senhor nos adverte nos Evangelhos: não devemos julgar o outro; ainda que este conselho divino tenha sido muitíssimo deturpado e usado como desculpa para a licenciosidade, não há dúvida de que esta é, sim, uma grande demonstração da verdadeira humildade. A simplicidade leva as pessoas a se respeitarem umas às outras, pois quem é realmente simples e humilde não julga seu próximo, sabendo que é também ele próprio pecador, logo não procura controlá-lo e nem presta atenção demasiada aos detalhes que não dizem respeito à sua própria vida. O orgulho foi o primeiro pecado cometido pelos seres humanos; tem sua origem na antiga Serpente, representação do mal e da mentira, que o transmitiu à Eva, mãe da raça humana pecadora.

“Bem aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.(…) Portanto, quem se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus.” (Mt 5, 5.11.18)


São muitíssimas as passagens das Sagradas Escrituras que enfatizam a importância e santidade da humildade e da simplicidade, mas também há abundantes indicações de como evitá-lo, como veremos agora.

A maneira de vencer o orgulho, evidentemente, é cultivar a humildade (ao falar das virtudes, voltamos sempre a ela). Vimos que cultivar a humildade é uma prática espiritual de vital importância, a qual conduzirá a uma imensa evolução no crescimento interior de todo cristão. Conhecer o sentido da humildade já é o primeiro passo para começar a adquiri-la verdadeiramente e vencer o orgulho. Humildade é a qualidade daqueles que não tentam se projetar sobre o outro. É saber que, para que um seja feliz, o outro não precisa sucumbir, ao contrário – e viver segundo esta convicção. A plenitude nunca será possível enquanto houver um irmão sofrendo, seja logo ao lado ou num país distante. Portanto, não será possível antes do retorno de Nosso Senhor e a restauração total que Ele trará.

O vocábulo “humildade” vem do Latim “humus”, que significa “terra, solo; chão”. Sendo humildade a virtude que nos dá a consciência exata de nossa pequenez, fraqueza e modéstia diante de Deus Todo-Bom e Todo-Poderoso, vem daí o costume antigo de prostrar-se por terra diante da Glória e da Perfeição divinas. O ser humilde nos concede um sentimento de reverência e de imenso respeito por Deus, e isso necessariamente se estende ao mundo que nos cerca, à natureza e principalmente ao nosso próximo, pois também são obras do mesmo Deus.

Ser humilde é ser também mais humano, pois é ser consciente da própria condição humana, por um lado privilegiada e especialíssima, por outro frágil e pequenina, se comparada à enormidade da Criação e ao Infinito da Majestade divina.

Ser humilde é, por fim, ser parecido com o Bem Amado Jesus, que além de Deus e Salvador, foi o maior Mestre que pisou a face da Terra. Mesmo assim, sua vida neste mundo refletiu humildade infinita do começo ao fim, em cada atitude sua. O Rei dos reis viveu uma vida simplérrima desde o nascimento, pôs-se de joelhos para lavar os pés aos discípulos (você faria algo parecido?) e se entregou à tortura e à horrenda morte de cruz, o mais humilhante castigo daquele tempo.

Você consegue imaginar o Rei da Glória, o Príncipe da Paz, o Leão de Judá, o Filho de Deus eterno e Todo-Poderoso, sendo Deus Ele mesmo, submetendo-se aos soldados romanos, levando cusparadas, apanhando, recebendo chutes, socos, sem reclamar? Sendo chicoteado e coroado com espinhos, depois exposto ao público, para ser escarnecido, blasfemado… E suportando tudo isso, mudo como um cordeiro?

Eis é a maior das maiores provas de humildade que já existiu, e só poderia ter partido de Jesus, o maior de todos os exemplos que temos para entender que o orgulho, além de pecado gravíssimo, é enorme estupidez. Lembre-se, porém: a prática da humildade, que vence o pecado capital do orgulho, se dá de si para si mesmo, na observância da própria insignificância e no reconhecimento das próprias incapacidades e imperfeições. Não é você que deve julgar o orgulho ou a humildade do seu próximo, e sim somente Deus. Conscientizar-se disso já é um começo.

Nota:

[1] Pois “cada um é escravo daquilo que o domina”, conforme ensinam as Escrituras (2Pedro 2,19s). Sejamos, então, servos d’Aquele que é o único que pode nos dar a perfeita liberdade e a vida eterna, e que por amor se doa pelo nosso bem.

Módulo 2: Ascética e Mística 2 | Sua importância para a Teologia III

4. As Fontes da Teologia Ascética e Mística


As ciências espirituais são partes integrantes da Teologia fundamental e dogmática; é evidente, portanto, que as suas fontes são as mesmas. São estas, antes de tudo, aquelas que contêm ou interpretam o Depósito da Revelação: Sagradas Escrituras e a Tradição, discernidas segundo o Magistério perene; depois, temos fontes secundárias, com todos os conhecimentos que nos vêm da razão iluminada pela Fé e pela experiência adquirida pelos Santos.

Nas Sagradas Escrituras não encontramos síntese alguma da doutrina espiritual, senão riquíssimos ensinamentos em registros dispersos, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, seja sob a forma de doutrinas, orações, conselhos, preceitos, ou exemplos.

• Doutrinas especulativas sobre Deus, sua natureza, seus atributos, sua imensidade que a tudo penetra, sua infinita sabedoria, sua bondade, sua justiça, sua misericórdia, sua ação providencial a qual exerce sobre todas as criaturas, mas principalmente sobre os homens, para os salvar; sua Vida divina, a geração misteriosa da Eterna Sabedoria ou do Verbo, a processão do Espírito Santo, laço mútuo do Pai e do Filho; suas obras: em particular o que Ele fez pelo homem, para lhe comunicar uma participação de sua Vida para a restauração depois da Queda, pela Encarnação do Verbo e pela Redenção, para o santificar pelos Sacramentos, para lhe preparar, enfim, no Céu, as alegrias eternas da visão beatífica e do Amor puríssimo.

É evidente que uma doutrina tão nobre e tão elevada, serve de poderoso estímulo para aumentar em nós o amor por Deus e o desejo pela perfeição.

• Uma doutrina moral composta de preceitos e conselhos: o Decálogo que se resume todo no Amor a Deus e ao próximo, e por conseguinte no culto divino e no respeito dos direitos do outro; o ensino elevado dos Profetas que, recordando sem cessar a Bondade, a Justiça, o Amor de Deus para com seu povo, o desvia do pecado e sobretudo das aberrações idolátricas, inculca-lhe a reverência e o amor a Deus, a justiça, a equidade, a bondade para com todos, sobretudo para com os mais frágeis e oprimidos;

os discretos conselhos dos Livros sapienciais que contêm por antecipação um tratado completo das virtudes cristãs; mas, acima de tudo, a admirável doutrina de Jesus, a síntese ascética condensada no Sermão da Montanha, a doutrina igualmente elevada que se encontra nos discursos transmitidos por São João e comentados nas suas Epístolas; a Teologia espiritual de São Paulo, riquíssima em sínteses dogmáticas e aplicações práticas. Ora todo o Novo Testamento é já um código de perfeição.

• Orações para nos alimentar a piedade e a vida interior. Existirão outras mais belas do que as que se encontram nos Salmos e que a Igreja julgou tão próprias para glorificar a Deus e nos santificar que as trasladou para a sua Liturgia, para o Missal e para o Breviário? Há outras ainda que se encontram dispersas pelos Livros históricos ou sapienciais; mas sobretudo o Pai Nosso, a oração mais bela, mais simples, mais completa em sua brevidade que se poderá encontrar, oração sacerdotal de Nosso Senhor mesmo, sem falar das doxologias que se encontram já nas Epístolas de São Paulo e no Apocalipse.

• Exemplos que nos arrastam à prática da virtude. O Antigo Testamento faz desfilar diante de nós uma série de Patriarcas, Profetas e grandes homens e mulheres, os quais, sem deixarem de ter fraquezas humanas, obtiveram virtudes que foram celebradas por São Paulo e longamente descritas pelos Santos Padres, que as propõem para a nossa imitação. Com efeito, quem não admirará a piedade de Abel e de Henoc, a virtude sólida de Noé, praticando o bem no meio de uma geração corrompida, a fé e a confiança de Abraão, a castidade e a prudência de José, a coragem, a sabedoria e a constância de Moisés, a intrepidez, a piedade e a sabedoria de Davi, a vida austera dos Profetas, a bravura dos Macabeus, e tantos outros exemplos.

No Novo Testamento é, antes de tudo, Jesus Quem nos aparece como o protótipo ideal da santidade; depois, Maria e José, seus fiéis imitadores, os Apóstolos, que, de início imperfeitos, devotam-se de corpo e alma à pregação do Evangelho e à prática das virtudes, com tal perfeição que nos repetem tão ou mais eloquentemente pelos seus exemplos do que pelas suas palavras: se vários destes Santos tiveram as suas fraquezas, a maneira como as superaram realça muito mais o valor dos seus exemplos, mostrando-nos como podemos resgatar as nossas faltas pela penitência e, especialmente, pela conversão, isto é, pela mudança de vida.

Módulo 2: Ascética e Mística 1 | Sua importância para a Teologia II

 3. Diferença entre Ascética e Mística

O que estudamos até aqui aplica-se geralmente tanto à Ascética quanto à Mística. Para as distinguir, porém podemos assim defini-las:

> Teologia Ascética

Parte espiritual da Teologia que tem por objeto próprio a teoria e a prática da perfeição cristã desde os seus princípios até o limiar da contemplação infusa. Tal perfeição começa com o desejo sincero de progredir na vida espiritual, e a Ascética conduz a alma, através das vias purgativa e iluminativa, até à contemplação adquirida.

> Teologia Mística

Parte espiritual da Teologia que tem por objeto próprio a teoria e a prática da vida contemplativa, desde a primeira noite dos sentidos e da quietude até o matrimônio espiritual.

Estas perfeitas definições de Mons. Tanquerey (lê-se mais corretamente com a pronúncia ‘Tanquerrêi’) muito provavelmente incluem termos que não são conhecidos de alguns estudantes, motivo pelo qual os explicaremos antes de prosseguir. Não convém deixar passar os termos e conceitos que porventura nos sejam desconhecidos em nenhum ponto destes estudos, porque voltarão para nos atrapalhar depois. Vejamos, pois, pela ordem em que apareceram nas definições.

– Contemplação

Na simplificação de Mons. Tanquerey, é uma intuição ou visão simples e amorosa de Deus e/ou das coisas divinas. A contemplação cristã, do latim contemplatio (grego θεωρία, theoria), refere-se no Cristianismo a um conjunto de práticas cristãs como o o hesicasmo (‘quietude’), que buscam “olhar para” ou “obter consciência de” Deus ou da Realidade divina. A prática contemplativa ou mística é uma parte integrante e antiga da vida das igrejas cristãs.

– Contemplação infusa

Também chamada em Teologia Contemplação sobrenatural, esta se define por ser obra do próprio Deus no ser humano. A contemplação infusa se dá quando há a suspensão do intelecto diante de uma Verdade revelada. A pessoa, por ser incapaz de apreendê-la ou abarcá-la por seus próprios meios, faz-se como que extasiada; não podendo agir por si mesma, torna-se passiva, sendo movida por este ato de aceitação amorosa. Este mesmo movimento também provoca a vontade da pessoa pelo amor.

“A contemplação é o olhar mais livre e mais penetrante de uma mente, suspensa em admiração diante da manifestação da Sabedoria [divina]”, assim a descreveu perfeitamente Ricardo de São Vítor[1]. A contemplação infusa, pois, não é um ato ou realização do intelecto; é um acontecimento provocado por Deus ou pela divina Sabedoria muito mais profundo do que qualquer possível apreensão normal pelas faculdades humanas, e assim comove a vontade.

São Paulo Apóstolo disse que a Fé opera através da Caridade (Gl 5,6), e o gigante da Mística São João da Cruz que:

A contemplação é ciência de amor; é amorosa comunicação infusa de Deus e que vai ao mesmo tempo instruindo e enamorando a alma até elevá-la, de grau em grau, a Deus seu Criador. (Noite II, 18,5)


Dizendo do modo mais simples possível, a Contemplação infusa é uma comunicação de Deus à alma humana, motivada pelo amor a Deus, por Amor de Deus e

que produz amor na mesma alma, embora a sua operação envolva também o intelecto. Entre os seus efeitos, está o ardente desejo de se unir a Deus, mas também uma grande quietude, paz e contentamento no espírito. De momento, é o que basta saber a respeito, porque as questões ligadas à contemplação serão fundamentais no estudo da Ascética e da Mística, e a elas retornaremos recorrentemente. No tempo oportuno trataremos com mais detalhes não só da teoria como também e especialmente da sua prática.

– Contemplação adquirida

Dizendo de modo bem elementar, depois da explicação sobre a contemplação infusa, chama-se adquirida quando é fruto de nossa própria ação, como deve ser evidente, sempre auxiliada pela Graça, de modo diverso ao que ocorre na contemplação infusa a qual, como vimos, ultrapassa essa atividade, sendo operada por Deus com o nosso consentimento. Trata-se de um estágio inicial que deverá ser superado, mas que já traz grandes frutos e maravilhosas consolações ao cristão.

– Via Purgativa e Via Iluminativa

Estas matérias serão tratadas e examinadas cuidadosamente no correr desta formação, de modo que não a apresentaremos em detalhes ainda. Diremos apenas, como o básico do mais básico, que:

* A Via purgativa é uma etapa de purificação da alma, com o combate mais intenso ao pecado e aos vícios, da intensificação da conversão. Significa limpeza, penitência, envolve “noites escuras” e provações que são oportunidades para a ascese, pois a subida até Deus requer o desapego, além da descoberta mais profunda de quem somos nós e de Quem é Deus.

** A Via Iluminativa é aquela alcançada pela alma que já se despoja do “homem velho” e deve agora revestir-se do “homem novo” (Ef 4). Seu primeiro estágio consiste na iluminação concedida pelo Céu à alma para compreender o real valor e importância das coisas exteriores para o progresso espiritual. Caracteriza-se pela fascinação por Deus, pelo santo prazer nas descobertas místicas. Desenvolve-se o desejo de entrega e doação de si, o amor à Cruz, a sensibilidade fraterna, a sede pelo Espírito Santo e por seus dons e frutos. Há profunda paz e a serenidade interior, união com Maria e os santos, o estímulo para a oração e para serviço aos irmãos, especialmente aos pobres.

– A Primeira noite dos sentidos

Em sua obra clássica “A Noite Escura da Alma”, São João da Cruz descreve três tipos de “noite” que precedem a experiência mística da União com Deus. Em primeiro lugar vem esta “noite dos sentidos” onde todo prazer, satisfação ou deleite com as ilusões desse mundo são eclipsadas na alma que se eleva rumo ao topo da contemplação mística[2].

– O Matrimônio espiritual

Em sua obra O Castelo Interior, Santa Teresa de Jesus explica o mecanismo da alma considerando-a como um castelo rodeado de aposentos, assim como no Céu há muitas moradas (cf. Jo 14,2). No centro habita a Santíssima Trindade, a espera que a alma adentre sua última morada para ter com ela União, qual casamento espiritual ou união esponsal entre Deus e a alma que d’Ele necessita. É daí que a luz é irradiada, refletindo-se por todo o castelo. Quanto mais próxima do centro, mais a alma recebe esta Luz divina.

São João da Cruz – será inevitável citá-lo muitas vezes nestes nossos estudos –, com propriedade tomou o Cântico dos Cânticos bíblico para torná-lo um belíssimo poema, que diz: “Caminho em noite escura, mas, ó feliz ventura do amante em seu amado, no repouso descansado”. Pois, nesse “casamento” sagrado, o Esposo é Deus e a esposa, a alma humana.

O Matrimônio espiritual refere-se, pois, à União entre nossa alma e Deus. Esse é o casamento que Deus quer e que o Cristo preparou, porque, nossa alma andará inquieta até encontrar repouso em Deus, como disse Santo Agostinho em suas Confissões. Nossa alma anseia natural e ardentemente, mesmo que não o saiba, por viver em Deus, mas esse banquete nupcial, essa fusão de nossa alma com Deus, pode ser difícil, dado o estado deplorável da alma decaída.

Entre a Teologia Ascética e a Mística, há diferenças importantes as quais serão assinaladas mais tarde; mas há também entre as duas uma certa continuidade, sendo uma como que a preparação para a outra – pois Deus faz uso, quando o julga conveniente, das disposições generosas do asceta para o elevar aos estados místicos.

Em todo caso, o estudo da Mística projeta luz sobre a Ascética, e vice-versa; pois os caminhos de Deus são harmônicos. A ação poderosa que Ele exerce sobre as almas místicas faz perceber sua ação menos vigorosa sobre os principiantes; assim as provações passivas, descritas por São João da Cruz, fazem melhor compreender as securas que ordinariamente se experimentam nos estados inferiores, e do mesmo modo entendem-se melhor as vias místicas quando se vê a que docilidade, a que maleabilidade chega uma alma que, durante longos anos, se entregou aos árduos trabalhos da ascese. Estas duas partes de uma mesma ciência esclarecem-se, pois, naturalmente, e é conveniente que não sejam separadas.

Notas:

[1] Em sua obra “Benjamin Maior” ou “Arca Mística” (‘O Livro dos Doze Patriarcas’), citado aqui apud White, Keith J.; WRIGHT, Dana R. The Logic of the Spirit in Human Thought and Experience, Eugene: Pickwick Publ., 2018 p.126. Ricardo de São Vitor (*aprox.1110 – +1173) foi um monge escocês da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho cuja Teologia Mística exerceu grande influência entre os doutores e teólogos do seu tempo. Foi o prior da famosa Abadia de São Vitor, agostiniana, em Paris de 1162 até a sua morte.

[2] A segunda noite é a “noite do espírito”, na qual a alma perderá também a alegria das realidades espirituais, para que apenas a Fé pura e simples lhe sirva de guia rumo à União com Deus. A terceira noite é a “alvorada” quando a Luz divina principa a dar sentido a tudo. Depois dessas etapas é que virá a Iluminação divina, o mais perfeito estágio da alma antes de ganhar o Céu.

Módulo 2: Dogmática 3 | A Fé divina II

 “Cogito, ergo sum” (‘Penso, logo existo’), percebeu, num vislumbre genial, o Pai da Filosofia Moderna[1].Ele tinha decidido descartar absolutamente todas as convicções ou certezas adquiridas pela humanidade até então, e esta era a primeira verdade que ele pudera confirmar por si mesmo, a primeira certeza absoluta e insofismável que ele descobriu que possuía, a qual podia afirmar sem medo. Mas, depois deum tempo, sob o risco de cair num solipsismo inescapável, precisou reconhecer que ele próprio não era a causa de si mesmo, que tinha que haver algo antes dele que lhe deu origem e – mais além, constituindo esta a sua terceira prova da existência de Deus –, era necessário existir também Aquele que garante a contingência do espírito humano. Em outras palavras, assim como não podemos nos gerar a nós mesmos, não podemos conservar a nossa própria existência por meio de nossas próprias forças.


Dizendo mais resumidamente, não podemos garantir nem a nossa existência e nem a nossa continuidade, mas apesar disso existimos e nos conservamos existindo, pelo tempo que nos é dado. Logo, é preciso existir algo exterior a nós mesmos que garanta essa nossa existência. Aí está uma bela prova da existência de Deus, dada por um personagem que os católicos tradicionais costumam desprezar[2]. De modo semelhante e por consequência, é preciso existir algo que nos guie até um conhecimento que é, por sua própria natureza, superior às capacidades humanas. Seres finitos e imperfeitos que somos, estudamos matérias relacionadas às realidades infinitas e perfeitas (divinas). A Fé cristã, portanto, não é o fruto de uma conquista humana, mas está fundada sobre um puro Dom, uma comunicação do Alto; é inútil esforçar-se para elevar tanto o nosso pensamento até que alcance Deus: para que sejamos capazes de avançar, é Ele mesmo Quem deve nos descer ao encontro, tornar-se presente à nossa inteligência a fim de revelar os seus segredos, aqueles que Ele, em sua sabedoria infinita, julgar convenientes. Assim Ele nos fala por vias e de modos que nos são acessíveis[3]. Deus nos fala porque, em seu incompreensível Amor, quer nos fazer partilhar algo de sua Vida, cá na Terra, e nos chamar mais tarde à posse inebriante dessa mesma Vida. Ora o viver, para o espírito, é conhecer e amar: a comunicação de conhecimentos sobre Deus, tal é a Fé, assim como a caridade é comunicação do Amor divino. Por ser sobrenatural, esse nosso destino escapará inevitavelmente ao alcance da razão. Era, pois, inevitável esse caos de opiniões humanas – quando essas opiniões são desvinculadas da condução da Igreja, dada por Deus mesmo –, sobre o sentido da vida: só Deus nos pode dar a plena solução do maior de todos os problemas; só Ele nos pode fazer conhecer seus livres desígnios. A Revelação é essa Mensagem de Deus ao homem.

Nas Sagradas Escrituras, a cada passagem das Epístolas e dos Atos, repetem os Apóstolos que a nossa Religião, por eles pregada, não é uma invenção própria, nem mesmo eles a receberam ou aprenderam de homem algum, mas pela Revelação de Deus-Jesus Cristo.

Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado; pelo contrário, eu o
recebi de Jesus Cristo por revelação.
(Gl 1,12)


A judeus e gentios, os enviados do Senhor se apresentam como simples arautos
de Cristo, obedientes à ordem de levar a mensagem de salvação a todos os povos:

Eu recebi do Senhor aquilo que também vos transmiti.
(1Cor 11,23)

Eu vos lembro, irmãos, o Evangelho que vos preguei, e que tendes acolhido, no qual estais firmes. Por ele sereis salvos, se o conservardes como vo-lo preguei. De outra forma, em vão teríeis abraçado a Fé. Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido.
(1Cor 15, 1-3)


Esse Cristo a quem apelam, de quem são arautos, dissera-lhes: “Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo aquilo que ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15). Cristo é o Verbo, Palavra do Pai. Encarnando-se, vem manifestar e dar a conhecer ou revelar o Pai. Ser a “Luz dos homens” (Jo 1,4) é a sua função própria; para isso nasceu, para isso veio ao mundo. Todavia, não para espargir luz criada ou saber humano, mas veio em Nome do Pai para irradiar Luz incriada, manifestar o Pai:

Quem crê em Mim, crê não em Mim, mas n’Aquele que me enviou; e aquele que me vê vê Aquele que me enviou. (…) o que digo, digo-o segundo me falou o Pai.
(Jo 12,44-45.50)


Ele é de tal forma o Redentor que não apenas ouvindo-lhe as palavras, mas simplesmente conhecendo-o, conhecemos a seu Pai. O fiel comum, que por vezes se sente desnorteado com os mais altos conceitos teológicos e que indaga o que significa exatamente o termo “Revelação”, abra o Evangelho e veja como, dia após dia, o Verbo encarnado instrui aos seus discípulos; como aos poucos lhes infunde nas almas os conhecimentos acerca do Pai – vindos do próprio Pai –, e terá uma noção concreta do que seja a Revelação: a manifestação, por Deus, das verdades sobre Deus.

Neste ponto cabe uma observação muito importante: a verdadeira Revelação divina é essencialmente diferente ou mesmo contrária àquelas doutrinas das muitas escolas herméticas e ocultistas ou alternativas, que apresentam versões heterodoxas do Cristianismo, sempre baseadas em interpretações e elucubrações meramente humanas sobre os Livros sagrados e as tradições antigas, ou em miscelâneas de distintas doutrinas, muitas vezes com elementos da espiritualidade oriental. E em quais pontos, exatamente, é assim tão diferente? Além do que terminamos de ver, a procedência do Alto, a diferença está no fato de que a verdadeira Revelação nos é dada apenas em parte, avança até certo ponto, faz-nos descobrir as bases do que há por trás do Véu do Mistério Divino, sem o elucidar por completo. “Hoje vemos como que por um espelho, confusamente”, diz o Apóstolo; “mas então (somente no Céu, ou quando retornar o Cristo, glorioso) veremos face a Face”. E reitera: “Hoje conheço [somente] em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido” (1Cor 13,12).

O Céu não nos revelou tudo, ainda. Nesta etapa da grande jornada humana, não recebemos de Deus o dom de conhecer tudo o que há para ser conhecido, e de fato estamos muitíssimo longe disso. Não nos cabe saber detalhes sobre como será a nossa vida no Céu, ou quanto às realidades angélicas, às glórias celestes de Nossa Senhora e dos Santos, como são as suas moradas, de que modo se constituem os corpos gloriosos, nem outras minúcias semelhantes a estas. O que a Revelação nos dá é a certeza do caminho a ser seguido, e nos diz o que devemos e o que não devemos fazer enquanto caminhamos neste mundo de dores. E o nosso caminhar deve ser sempre mais e mais célere e firme, e sem desvios, continuamente mais ao fundo do grande Mistério, da santidade absoluta, sabendo que santidade significa separar-se de tudo o que é vão, fútil, efêmero, temporário, enganoso e potencialmente perigoso para a alma.

Duc in altum! Ruma mar adentro, avançando sempre para as águas mais profundas (Lc 5,4.10), é o que nos ordena Nosso Senhor, assim como mandou a Pedro.

[1] DECARTES, René. Discurso do Método, 1637.

[2] Já que René Descartes inadvertidamente veio a se tornar um dos principais causadores de um grande mal ao pensamento filosófico, pela ruptura com a tradição e a inauguração de um novo modo de conceber a vida, o homem e a natureza, por meio do conhecimento racional, algo que redundaria no cientificismo que até hoje nos assola. A este autor que vos fala, porém, parece que ele tentava ser um bom católico e que ainda mereça algum respeito de nossa parte. Em anexo especial deste módulo, disponibilizaremos o resumo completo das suas três provas da existência de Deus.

[3] É uma experiência universalmente compartilhada pelos cristãos o ouvir a “voz de Deus” a lhes falar diretamente, seja em uma homilia, em uma pregação ou por meio de uma boa leitura, por exemplo; muitas vezes aquela mensagem esclarece alguma dúvida atroz, dá um direcionamento preciso ou até faz cessar uma grande angústia. Isso se dá, como é evidente, em parte porque muitos dos problemas que os cristãos enfrentam são comuns e compartilhados por muitos ou até por todos. Todavia, em grande medida essas comunicações se referem a problemas e situações realmente tão específicos que dificilmente seriam inexplicáveis pela mera coincidência.

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