Módulo 1 : Dogmática 2 | Cultura religiosa, ou cultura e Religião


Segundo uma sentença atribuída a Sócrates, o filósofo, só faz o mal quem o ignora, ou aqueles que não sabem o que é o bem. Assim teria dito ele, segundo Platão, em seu “Mênon” (Dos Diálogos): “Não penses mal dos que procedem mal, pense que estão equivocados”. Isto é, se alguém pratica más obras, é por engano, por ignorância do bem; se tivesse melhor conhecimento, suas obras seriam boas.

[*Saliente-se, de passagem, que Sócrates nada nos legou por escrito. O que sabemos dos seus pensamentos vem daquilo que se encontra nas obras de seus discípulos, principalmente o próprio Platão em seus Diálogos. Assim, de fato, não temos como saber até onde estamos apreciando realmente Sócrates e a partir de que ponto começa o pensamento de Platão (tanto assim que não falta quem chegue ao exagero de especular que Sócrates nunca tenha existido).]

    Partindo desse princípio, concluíram alguns que os sábios deveriam ter como sua grande missão combater as trevas da ignorância. Com a luz do conhecimento, viria por acréscimo, sobre o mundo, o reinado das virtudes. Surgia o cientificismo, doutrina segundo a qual o homem, por suas próprias forças e amparado pelas tecnologias que ele mesmo é capaz de engendrar, será um dia capaz de se tornar autossuficiente, criando uma sociedade perfeita (na qual Deus será completamente esquecido, já que a Fé será, então, coisa simplesmente desnecessária).

    Vivemos no século XIX o auge de uma prolífica produção científica, tanto de novas proposições teóricas quanto de avanços tecnológicos inéditos e realmente espantosos, os quais estimularam tal crença, originando-se aí uma influente geração de pensadores ateus-materialistas. Estavam todos muito empolgados com os novos avanços científicos, tais como:

        • o evolucionismo de Darwin, Lamarck e Spencer;

        • a bacteriologia/imunologia de Pasteur;

        • a revolução das ciências econômicas de Smith, Marx e Malthus;

        • o eletromagnetismo de Faraday e Maxwell;

        • a sociologia de Durkheim;

        • a psicanálise de Freud;

        • etc, etc.

    Em meio a essa empolgante avalanche de produção de novos conhecimentos e tecnologias, reverberava o delírio cientificista, a fé quase cega em um novo “salvador” da humanidade: o incensado “progresso”, que passava a ser entendido quase como uma entidade autônoma, criada pelo homem mediante a evolução de conhecimentos os quais, um dia, explicariam totalmente a realidade e permitiriam manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana. O livro “O Alienista”, de Machado de Assis, é uma crítica soberba a esse furor cientificista e racionalista que ironicamente termina por se tornar irracional, desumano e perverso.

    Sim. A História, depois de Sócrates – supondo que ele realmente tenha dito aquilo –, veio a desmenti-lo fragorosamente, demonstrando com absoluta clareza que a sua conclusão não passava de um ideal equivocado, racionalista e utópico. De fato, é de lamentar que um sonho tão pueril quanto perigoso ainda anime tantas mentes de pensadores em nossos tempos. Agora, aliás, a mesma ideia permanece de maneira mais danosa, pois Sócrates ao menos ensinava, assim como procurava observar em sua própria vida, uma moral de elevado padrão, enquanto que os ingênuos cientificistas atuais pretendem salvar o mundo simplesmente espargindo-lhe “cultura” (ou aquilo que acreditam que o seja), como se a barbárie promovida em nome da própria ciência – e ampliada muitas vezes justamente com a ajuda desta –, não fosse uma realidade inegável.

    Aos que não vivem perdidos em utopias, mostram os simples fatos a possibilidade que todos temos de apreender e conhecer, sim, a verdade moral – e mesmo assim desobedecer-lhe. Não apenas inteligência e o conjunto dos seus conhecimentos adquiridos, mas também livre vontade, este é o ser humano. 

    Ainda que conheça, compreenda e entenda a validade dos preceitos da ética, o homem pode ainda contrariá-los… É exatamente a essa decisão e a esse gesto que nós, cristãos, chamamos “pecado”. 

    Poderíamos aqui citar Ovídio, mas preferimos dizer com São Paulo Apóstolo: “O querer está em mim, mas não consigo realizar o bem; porque não faço o bem que desejo; mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7,18-19).

    Entrando no campo da Religião, cultiva uma perigosa ilusão aquele que imagina que a mera instrução religiosa, por si só, haveria de gerar católicos sem falhas. Está bem diante de nossos olhos a nossa experiência comum e diária, que ratifica como o conhecimento das coisas santas, ainda mesmo que seja profundo, convive tranquilamente com uma vida cristã medíocre ou até mesmo com uma inveterada vida de graves pecados habituais. 

    Quantos dentre nós conhecemos católicos esclarecidos, de boa cultura e bem formados, que possuem bons conhecimentos sobre a moral e a Doutrina da Igreja, mas que prevaricam o quanto podem? 

    Diante de católicos pecadores contumazes, é muito comum que se ponha a culpa na má formação, na catequese deficiente, na degradação das famílias e outros fatores externos. Não é falso que todos esses males são reais, exercem influência e são preocupantes, mas – como atestou Padre Penido em sua Iniciação –, estes não representam a principal causa do maior mal. A raiz do problema está em pessoas materialistas, de mentalidade imanente, que mantém no seu subconsciente que, no fundo, nada existe além da matéria, do Universo físico. 

    É que de tanto ver agir o homem sobre a matéria bruta com bons resultados, pela via das ciências naturais, passam então a imaginar que se possa atingir a mesma eficiência no trato com pessoas humanas, dotadas de físico e de alma. Esquecemo-nos da realidade inescapável de nossa própria essência: não somos como as máquinas, e sim seres vivos e livres, capazes de tomar decisões.

    Os pedagogos, mesmo quando conseguem – e isto é algo raro –, penetrar além da superfície do “eu”, veem escapar-lhes a região obscura onde se esconde, inviolável, o livre arbítrio[1], com o seu terrível poder de resistir a Deus Criador e Salvador.

    Porventura não era Jesus o Sumo Pedagogo? Não formou Ele seus doze escolhidos, com zelo clarividente, ensinando-lhes as mais sublimes doutrinas, realizando diante deles os mais extraordinários milagres, arrastando-os pelos mais comovedores exemplos, seduzindo-os pela aura de sua santa personalidade? Pois bem; ainda assim, houve entre os Doze um traidor. Mais além, aquele escolhido para liderar os demais, a Pedra que deveria ser firme, o negou não uma, mas três vezes seguidas, e, à exceção do amado João, os outros todos fugiram, tentando salvar as próprias peles no pior dos momentos, deixando seu Mestre e Senhor a enfrentar, abandonado, o próprio destino. 

    Ora apenas o exemplo de Judas deveria, sozinho, ter servido para exterminar de uma vez por todas as ilusões dos que pensam como teria pensado o ingênuo Sócrates.

    Poderíamos tentar enfraquecer ou mesmo destruir o poder do livre arbítrio, à semelhança dos materialistas-totalitários do nosso tempo, os quais procuram transformar pessoas humanas em máquinas, obedientes às suas tendências genéticas e físicas como robôs. Mas isto seria a negação do Cristianismo. Cristo não quer escravos; espera ser livremente servido. E para esse serviço, não basta a boa instrução religiosa; deve haver uma escolha pessoal. Também por isso é tão importante que uma formação católica deste tipo venha acompanhada de uma segunda parte, como acontece aqui, destinada ao ensino da vida interior/espiritual, que leve a adorar a Deus em espírito e em verdade (cf. Jo 4,23), como quer Nosso Senhor, muito além do que apenas por meio dos meros conhecimentos técnicos/acadêmicos, que por si não são capazes de transformar vidas.

    Não podemos, todavia, cair no erro oposto: outra ilusão igualmente perigosa, ou ainda pior, seria enveredar pelo caminho contrário, imaginando que a ignorância religiosa faria brotar santos. Há os que pensam assim, confundido essas coisas, como se confunde simplicidade com estupidez, humildade com parvoice, o ser manso com ser passivo, o ser pacífico com ser pacifista. Novamente, vem a experiência mostrar que almas sem conta se afastam da Religião por não a conhecerem ou, pior, conhecerem-na mal. Ignoram esses as verdades que a Igreja propõe à aceitação da Fé, ou tomam por dogma coisas que jamais foram assim definidas, ou, ainda, são incapazes de responder à mais pueril objeção dos incrédulos. Para estes, parece-lhes o Credo um amontoado de assertivas sem sentido, sem legitimidade lógica e, principalmente, sem relação com a vida real.


Ignorância religiosa


A ignorância religiosa pode se revestir de muitas formas; todas são danosas. Para restringir esta abordagem ao problema do Brasil, é fato que o desconhecimento da Religião é a fonte principal da imensa quantidade de deploráveis superstições populares que nos cercam. Descobrimos o mesmo, também, ao investigarmos a origem de um dos piores perigos espirituais que nos ameaçam: o espiritismo. Há um número incrivelmente grande de pessoas – muitas vezes bem intencionadas –, que realmente acreditam que não há nenhum problema em frequentar os centros espíritas na sexta-feira (ou num dia qualquer da semana) e a santa Missa aos domingos. Imaginam que tais doutrinas não se contradizem, que é perfeitamente possível conciliar os dois sistemas. 

    Esperamos realmente que todos os que tenham chegado a esta formação, lendo agora estas palavras, saibam bem e acima de qualquer dúvida que tal concepção é completamente falsa, o que é mais do que óbvio para qualquer alma que tenha o mínimo conhecimento sobre a Fé católica que diz professar. Basta conhecer, logo de início, a diferença entre ressurreição e reencarnação (que tornaria inútil o Sacrifício de Cristo, que se renova na Missa) para estar imune ao perigo do espiritismo. Sendo assim, porque a realidade é tão diferente? Por que tantos, seduzidos por esse “canto de sereia”, são vítimas da mesma esparrela?

    A resposta é bastante evidente. Chegada a hora de passar deste mundo ao Pai, o Cristo ordenou aos seus Apóstolos: “Ide, ensinai a todas as gentes” (Mt 28,19). E “eles, tendo partido, pregaram por toda parte” (Mc 16, 20). Fiel ao preceito do Senhor e ao exemplo dos Apóstolos, a Igreja sempre considerou a catequese como parte fundamental da sua missão essencial. As perguntas provocativas de São Paulo Apóstolo sempre ecoaram forte aos ouvidos dos nossos pastores: “Todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem lhes pregue?” (Rm 10, 13-15).

    De fato, as Escrituras são contundentes quando tratam sobre a necessidade de se instruir bem as almas, para que não se percam. Em Oseias, é Deus mesmo Quem diz: “O meu povo se perde por falta de conhecimento” (Os 4,6). E nos Atos dos Apóstolos temos a narração de um episódio que demonstra à perfeição a que nos referimos aqui:

 – …um etíope, eunuco, ministro da rainha Candace, da Etiópia, e o superintendente de todos os seus tesouros, tinha ido a Jerusalém adorar. Voltava, sentado em seu carro, lendo o profeta Isaías. O Espírito disse a Filipe: “Aproxima-te bem perto deste carro. Filipe aproximou-se, ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e perguntou-lhe: “Porventura entendes o que estás lendo?” Res­pondeu-lhe o eunuco: “Como é que posso, se não há alguém que me explique?”. E rogou a Filipe que subisse e se assentasse junto dele. A passagem da Escritura, que ia lendo, era esta: “Como ovelha, foi levado ao matadouro; e, como cordeiro mudo diante do que o tosquia, ele não abriu a sua boca. Na sua humilhação foi consumado o seu julgamento. Quem poderá contar a sua descendência? Pois a sua vida foi tirada da terra (Is 53,7s)”. O eunuco disse a Filipe: “Rogo-te que me digas: de quem disse isto o Profeta? De si mesmo ou de outrem?”. Começou então Filipe a falar, e, principiando por essa passagem da Escritura, anunciou-lhe Jesus. Continuando no caminho, encontraram água. Disse então o eunuco: “Eis aí água. Que impede que eu seja batizado?”. Filipe respondeu: “Se crês de todo o coração, podes sê-lo.” – “Eu creio”, disse ele, “que Jesus Cristo é o Filho de Deus”. E mandou parar o carro. Ambos desceram à água e Filipe batizou o eunuco. Mal saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou Filipe dos olhares do eunuco que, cheio de alegria, continuou o seu caminho.
(At 8,27-39)

    “Como é que posso entender, se não há quem me explique?”: a pergunta do eunuco superintendente dos tesouros da Rainha ecoa aos nossos ouvidos até hoje. A ignorância de qualquer tipo só pode ser vencida com uma boa formação. E, se em todos os tempos, a Igreja considerou a ignorância religiosa como um grande mal, o que dizer de nossa época, em que grassa o indiferentismo religioso e o ateísmo militante? Sim, porque hoje o descrente já não se contenta em não crer: sentindo-se fortalecido pela cultura que o cerca, que é predominantemente materialista e baseada em ideologias anticristãs, o incrédulo também quer atacar aqueles que têm Fé, e ofendê-los, e profanar os seus templos, e destruir os seus símbolos sagrados. 

    Poderíamos dizer que a humanidade se esforça como nunca antes, em nenhum outro período da História, em não somente se esquecer de Deus, como também em criminalizar de algum modo aqueles que creem n’Ele. Nossa sociedade quer varrer para longe de si a sua própria consciência, que lhe grita que há uma Força, um Poder que é maior e externo – um Poder do qual depende a sua salvação. Por quê? Para quê? Para que possa pecar e chafurdar na lama sem impedimentos e sem remorsos.

    Já não parece mais suportável ao “homem moderno” a ideia de viver uma vida de privações dos prazeres, os quais podemos ver, na espera por uma eternidade de felicidade no Céu, que não podemos ver. Quanto mais avançam as tecnologias, mais recua a Fé e, com ela, suas consequentes virtudes.

    Ainda que o mero conhecimento da Religião esteja longe de ser tudo no caminho da salvação – importante saber e manter isto sempre em mente –, a aquisição dos bons conhecimentos é, sim, um pré-requisito indispensável à prática da Vontade de Deus. É que por sermos cristãos não deixamos de ser humanos; e o comportamento cristão será tão somente aquele que for norteado por uma inteligência humana iluminada pelo conhecimento das verdades divinamente reveladas.

    Todo dogma é como um preâmbulo da moral verdadeiramente cristã e católica: uma coisa leva a outra. Se nossa vontade deve se alinhar à Vontade de Deus, levando-nos a obedecer à Lei de Cristo, nossa inteligência deve igualmente servi-lo, fazendo-nos conhecer e assimilar o que nos foi revelado, tão profundamente quanto possível.

    Somos os membros vivos de Cristo na Terra; como não desejaríamos nos aprofundar no conhecimento dos Mistérios do Cabeça da Igreja? Como fecharíamos os olhos ao fluxo de luz que nos chega d’Aquele que é, Ele mesmo, Luz? 

    Pensamento Eterno do Pai, o Verbo (Filho) não se encarnou para apagar em nós o pensamento racional, de modo algum, mas sim para aguçá-lo, fortalecê-lo, torná-lo apto, elevá-lo a um nível o qual por si só jamais atingiria. Nossa vida cristã não pode ser uma vida de embotados, de tolos e medíocres, mas uma vida de almas pensantes em nível superior, a partir de um patamar mais elevado que o vulgar.

    Ensina São Paulo Apóstolo que, pela Fé, Cristo habita em nós (Ef 3, 17), e o faz de modo especialmente revelador:

Que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados e fundados no amor, a fim de que possais, com todos os santos, compreender qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus. Àquele que, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou entendemos, a Ele seja dada glória na Igreja, e em Cristo Jesus, por todas as gerações dos séculos dos séculos. Amém.
(Ef 3, 17-21)

    Maravilhosa revelação neste maravilhoso trecho das Escrituras, o qual o Espírito  Santo nos deu como Dom igualmente maravilhoso! Cristo, em nós, torna-nos capazes de adquirir grandes conhecimentos: entendemos “o comprimento, a altura e a profundidade” das coisas; e entendemos o Amor incondicional de Cristo por nós (Amor idêntico ao Amor do Pai), sendo que esse amor excede todo conhecimento. Assim, por esse Amor que não pode ser descrito, seremos então cheios da plenitude de Deus. E Deus, Criador e Redentor, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do que tudo o que somos capazes de entender.

[** Pausa para meditar. Reflita por um instante, contemplando a grandiosa verdade do que nos revela o Espírito Santo nesse trecho das Sagradas Escrituras.]

    Dando-nos a sua Verdade, o Verbo de Deus se dá a nós; faz-nos participantes de seu divino Saber: “Deus nunca foi visto por pessoa alguma, mas o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, esse o fez conhecer” (Jo 1, 18). Um raio do conhecimento divino transmitido pelo Filho, do Pai, veio iluminar nossas trevosas inteligências.

    Seria, pois, desprezar tamanha Luz professar a nossa Fé como se fôssemos robôs, sem nos esforçarmos por assimilar esta Fé também através dos nossos conceitos humanos. Devemos fazê-lo com humildade, porém, com santa avidez. Para tanto, supliquemos ao Espírito Santo que seja o nosso Auxílio.

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[1] Que estudaremos detidamente nesta formação – em seu significado, origem e finalidade.

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