
Há verdades essenciais que devemos crer, simplesmente porque representam a perfeita adequação entre o que pensamos e aquilo que de fato é. E também há enganos, quando o que consideramos é ilusório ou está em desacordo com o fato. Onde podemos, então encontrar as verdades que devemos crer? Podemos encontra-las nas duas chamadas "fontes da Revelação": as sagradas Escrituras (Revelação escrita) e a santa Tradição (Revelação oral), conforme a autêntica doutrina católica definida pelo Concilio de Trento: fontes de toda verdade salutar e da disciplina dos costumes são os Livros escritos e as tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos dos próprios lábios de Cristo ou a eles ditados pelo Espírito Santo, chegaram até nós como que transmitidas pelas mãos dos mesmos.
Quem discute com protestantes, ouvirá infalivelmente esta objeção: “Católicos admitem como verdade coisas que não estão na Bíblia (por exemplo, a perpétua virgindade de Maria); assim, estão adotando opiniões humanas que não são parte da Revelação divina”.
Quando não é maliciosa, essa objeção é ingênua. Na feliz expressão de São Tomas More: "A Palavra de Deus é tão forte não escrita quanto escrita"; segundo a doutrina católica, a Bíblia não é a única fonte da Revelação.
De fato, Jesus nada escreveu e jamais disse a seus Apóstolos que escrevessem, mas antes ordenou-lhes que pregassem. A Igreja primitiva se estabeleceu-se e cresceu por obra do Magistério oral e não por meio da leitura; somente décadas após a morte do Senhor começaram a surgir os escritos apostólicos. Estes, como é sabido, são muito incompletos. Os Evangelhos conservaram parte reduzida dos ensinamentos e milagres de Jesus, como atesta São João (21, 25). Tampouco foi guardado tudo quanto escreveram os Apóstolos (São Paulo cita epístolas suas que foram perdidas). As verdades que eles ensinaram de viva voz, conservaram-nas seus discípulos e os sucessores destes, segundo recomendava S. Paulo a Timóteo: "O que ouviste de mim diante de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes de instruir também a outros" (2 Tim 2,2). Assim é que se formou a cadeia da Tradição — doutrinal, teológica, dogmática, apologética.
Por certo, em tantos séculos que nos separam da idade apostólica, qualquer tradição humana já se teria deturpado há muito, muito tempo; mas, nesse caso privilegiado, o que é que lhe garante a fidelidade? A perpétua Assistência prometida por Cristo à sua Igreja (Mt 28,20).
Dessa Tradição, encontramos nos escritos dos Santos Padres e Doutores, assim como nos Símbolos de Fé, nos decretos dos Concílios, nas definições dos Papas, sua expressão fidelíssima.
Sobre o Magistério da Igreja pretendemos aprofundar, mais adiante, nesta Formação. Quanto aos Padres da Igreja, os bons teólogos nunca cessam de examinar as disciplinas que lhes dizem respeito — a Patrologia e a Patrística — e de encontrar aí os fundamentos da Tradição. Os Padres são autênticos testemunhos da Fé. Quantas conversões de protestantes nascem do estudo honesto dos seus materiais.
Observemos, todavia, que uma doutrina patrística só terá valor decisivo como porta-voz da Tradição dogmática quando refletir o consenso moralmente unânime dos Padres; não bastam textos isolados deste ou daquele, nem mesmo de um pequeno grupo. Nesse caso, só lhes caberia a autoridade de teólogos particulares. É indispensável, ainda, que os Padres deem tal doutrina como revelada por Deus e não apenas como simples opinião teológica. Existindo essas condições, cessa qualquer dúvida: estamos positivamente em presença de um enunciado que pertence à Fé. Com efeito, se o conjunto dos Padres se enganasse, ter-se-ia por força enganado a Igreja, pois eles eram os mestres em ortodoxia e os fiéis apenas os seguiam. É contra a Palavra de Cristo que a Igreja, na sua totalidade, em qualquer época, estivesse no erro — Inevitável não pensar em nossos tristes tempos, de muitas confusões e desmandos constantes partindo dos homens que herdaram dos Apóstolos suas posições, mas que não deixam de se deparar, sempre, com setores da Igreja que resistem a eles e mesmo os confrontam.
Também o conjunto dos fiéis, a Igreja discente, pode ser um órgão da Tradição, por exemplo, quando os teólogos ensinam em conjunto que tal doutrina é de fé, ou quando a totalidade dos católicos professa uma crença (por exemplo, na Assunção de Maria). Evidentemente, nesses casos a Igreja discente reflete apenas o ensinamento que recebeu da Igreja docente; o povo católico crê o que lhe ensinam seus pastores; logo um erro desta sorte, em que incidisse o povo, revelaria um erro na Igreja docente, o que é impossível.
Sagradas Escrituras e Tradição constituem, ambas, o "Depósito da Fé" (1Tm 6,20) que se acha, de uma vez e para sempre, completo com a morte do último Apóstolo. Motivo pelo qual as revelações privadas que se produziram no decurso da história do catolicismo, ainda que feitas a Santos realmente eminentes (por exemplo: do Sagrado Coração a S. Margarida Maria; de Nossa Senhora aos Pastorinhos de Fátima) não podem exigir de nós um assentimento de fé divina. Serão, sempre, casos de simples crenças humanas, embora piedosas e mesmo que sejam, muito provavelmente, verdadeiras.
Desenvolvimento da doutrina? Progressão do sistema de crenças? A Fé se elabora ou se compreende?
É falso considerar o "Depósito da Fé" como uma espécie de esboço ou mesmo um germe que se se desenvolve pouco a pouco. Na realidade, trata-se de uma plenitude; plenitude tal que são necessários séculos para que os homens possam aprofundar a verdade dos ensinos do Cristo e dos Apóstolos. O que progride não é, pois, o Depósito, mas o nosso conhecimento das riquezas nele entesouradas. Esse conhecimento vai se completando e determinando, de geração em geração, por obra do Magistério da Igreja, mas jamais poderá haver um novo ensinamento que contrarie outro dado anteriormente.
A função da Igreja é "guardar santamente e expor com fidelidade" o Depósito a ela confiado”[1].
• Guardar: conservar o que foi revelado, protegê-lo contra as deturpações, jamais ensinar falsos dogmas ou falsos entendimentos, não contidos no Depósito.
• Expor: discernir infalivelmente o sentido exato da Revelação a fim de propô-lo à crença dos fiéis; explicá-lo sem erro possível. Uma vez mais, neste ponto, somos confrontados com as grandes novidades trazidas pelo concílio Vaticano II. Nenhum dogma da Igreja pode, jamais, apresentar uma "novidade", mas sim meramente definir, no decorrer dos tempos, o que sempre foi crido. As verdades de Fé não são frutos de “novas revelações”, muito menos invenções dos homens que conduzem a Igreja na Terra. O que pode surgir de "novo" em termos de Doutrina se limita sempre ao campo das formulações das verdades reveladas que já se encontravam explicitamente expressas nas Escrituras ou na Tradição (ou em ambas), mas:
1) sua impugnação por algum heresiarca exigiu definição solene (por exemplo, a divindade do Verbo), ou
2) não haviam ainda sido expressas com a necessária clareza, ainda que estivessem implicitamente contidas no Depósito, exigidas por uma verdade já explicitamente revelada.
Basta uma simples explicação do Magistério infalível para trazer tais verdades à luz (por exemplo: a Imaculada Conceição).
É necessário, pois, distinguir-se com clareza entre o evoluir da Revelação e o progresso dogmático. O primeiro estendeu-se, por diversas fases, desde Adão até a morte do derradeiro Apóstolo; completou-se e encerrou-se então definitivamente[2].
Os que sonham com revelações novas, superiores ao cristianismo, como os joaquimitas na Idade Média ou os teosofistas e espíritas de hoje em dia, esquecem das palavras cominatórias de S. Paulo: "Ainda que nós mesmos ou um Anjo do Céu anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!" (Gl 1,8).
E para não deixar sombra de dúvida, logo a seguir repete a mesma coisa, insiste o Apóstolo:
“Como já vo-lo dissemos, agora de novo o digo: Se alguém vos anunciar um Evangelho diferente daquele que recebestes, seja anátema. Porque, agora, é o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo.”
(Gl 1,9s)
Severidade bem merecida; crer em novas revelações, ou mesmo espera-las, é fazer sumo agravo a Deus, como se o Pai não nos tivesse dado o próprio Filho, pelo Qual nos disse tudo o que precisamos saber para realizar nosso fim sobrenatural. O mesmo Pai solenemente declarou: "Este é o meu amado Filho, em que me hei comprazido, escutai-o!" (Mt 17, 5). Donde se concluir:
"O que crê no Filho de Deus, tem em si o testemunho de Deus. O que não crê no Filho, faz Deus mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus deu de seu Filho"
(1 Jo 5, 10).
Se a Revelação está definitivamente encerrada, por outro lado, sim, nosso conhecimento dela deve progredir, mas dentro da mesma Fé. Aumenta-se a riqueza e a nitidez do que cremos à medida em que a Igreja, assistida infalivelmente pelo Espírito Santo, vai explicando e propondo com maior clareza e de maneira definitiva o que já foi revelado por Cristo a seus Apóstolos.
Por consequência, não pode haver no século XXI verdades reveladas novas, ou mais verdades do que já havia no fim do 1º século; menos ainda é possível existir qualquer coisa que contrarie o que havia sido dito, ensinado e definido antes. Há tão somente conhecimento mais claros ou esmiuçados, porque houve proposição mais refinada dada pela Igreja; formulações novas de antigas verdades.
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[1] Concilio do Vaticano, Denzinger, n. 1836. Ao tratar do Magistério da Igreja explanaremos mais detidamente estas noções.
[2] Pio X, decreto Lamentabili, n. 21 (Denzinger, n. 2021).
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