Módulo 3: Dogmática 3 | A via da incerteza


        Continuação da citação de RATZINGER (leia a primeira parte)*


Santa Teresa de Lisieux


Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar, dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, geralmente [nos tempos tranquilos], lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux (na imagem acima, em uma fotografia clássica belamente colorizada), esta amável santinha aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeita e minuciosamente marcada pela Fé na Igreja que o mundo invisível se tornara para ela uma parcela do cotidiano; ou antes, tornara-se seu próprio cotidiano, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Santa Teresinha, “religião” era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas, justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu calvário. Manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona, nas novas edições autênticas e literais da sua obra.


    Assim, por exemplo, quando ela afirma: “Acossam-me as reflexões dos piores materialistas”, é porque sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a Fé; o sentimento mesmo da Fé lhe parece desaparecido; ela se vê transportada para dentro da “pele dos pecadores”[1].


    Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a si –, sob a crosta firme das convenções que sustentam a Fé. Em tal situação, não está mais em jogo apenas isto ou aquilo – a assunção de Maria ou não; a confissão desse ou daquele modo –, coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto se trata aí realmente do todo, do conjunto, de tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa: somente o abismo faminto e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares.



Paul Claudel


Paul Claudel evoca, em um quadro grandioso e convincente, essa situação do crente, na abertura do seu “Soulier de Satin”. Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como um náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano[2]. O drama se inicia com o seu último monólogo: “Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus Mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus Mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a Ti do que estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de Ti. E assim realmente estou preso à Cruz; e a Cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar”[3].


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* RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.

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Notas:
[1] Conforme a síntese informativa do periódico Herder korrespondenz nº 7 (1962/3, 561-565 sob o título “Die echten Texte der kleinen heiligen Thérese” (Textos autênticos de Sta. Teresinha). Estas citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, “La table des pécheurs”, em Dieu vivant nº 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições de A. COMBES, principalmente “Le probleme de I’ ‘Histoire d’une âme’ et des ‘Oeuvres completes de Ste. Thérese de Lisieux’”, Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, “Theresia von Lisieux”, em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104. Em “Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission”, publicado pela editora Lar Católico sob o título “Uma Santa na era atômica” (1961), podem-se conferir os conceitos aqui abordados, sobretudo às pág.s 125; 138 e seguintes e 174.

[2] O que evoca impressionantemente o texto bíblico do Livro da Sabedoria (10,4), tão importante para a Teologia da Cruz na Igreja antiga: “À terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho desprezível”. Sobre esse texto na Teologia Patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547.

[3] Conf. o texto alemão de H. U. Von BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16, apud RATZINGER.

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