Módulo 3: Dogmática 5 | Tentativa de definir a essência da Fé


A figura do palhaço incompreendido e dos camponeses despreocupados (reveja) que ignoram os seus avisos faz pensar na interdependência entre Fé e descrença em nossos dias. Pois ainda que tenhamos Fé no supranatural e no mundo invisível e intangível, precisamos viver neste mundo visível e palpável. As sessões de oração, meditação e contemplação às quais nos dedicamos não passam de pausas nesta rotina que forçadamente vivemos, em um mundo ao qual sentimos intimamente que não pertencemos, uma realidade que para nós representa nada mais que uma tormentosa passagem para a nossa Pátria Celeste. Por isso não nos apegamos (ou não podemos nos apegar) aos seus prazeres e distrações, não dedicamos nossa devoção maior às criaturas, e sim ao Criador-Doador da vida e de todos os bens.

E como encontramos na Fé as respostas para os nossos grandes problemas, ao ver o próximo que sofre sem encontrar a mesma porta de saída, queremos angustiadamente ajudá-lo. E, sim, a própria Religião nos diz que fazer isto é nossa obrigação. A salvação e os dons que recebestes do Céu, diz São Mateus Apóstolo, “de graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8). Mas ao falar em Jesus, na Igreja, nos Sacramentos, no Reino dos Céus, em Maria, nos Santos e Anjos, tornamo-nos de imediato como o palhaço do conto de Cox. Porque hoje, diferente do que havia nos primeiros tempos da Igreja – quando o Evangelho ressoava em cada ouvido como uma total novidade –, temos o preconceito dos que o conhecem mas, por uma grande variedade de razões, não o compreendem ou, ainda pior, mantém do Cristianismo uma imagem distorcida. Ainda assim, como disse belamente o poeta John Donne, cujo retrato ilustra esta página, “homem algum é uma ilha”[1]: só encontramos sentido nesta vida quando admitimos que ninguém se basta a si mesmo e que dependemos uns dos outros, em muitos sentidos. Na Igreja, cada membro do Corpo de Cristo está interligado ao outro e é corresponsável pela vida desse outro para o bom funcionamento de todo o organismo. Mais além, também não se pode viver neste mundo sem interagir com ele e com as pessoas que não têm Fé e/ou que erram em religiões diversas sem ter ainda conhecido ou reconhecido a Revelação.

Estamos aqui diante de um problema fundamental da Fé, que é esclarecer o que significa a pessoa afirmar: “Eu creio”. E essa questão fundamental se apresenta diante de nós sempre carregada do elemento temporal, este é um fator muito importante. Em outras palavras, devido à nossa inevitável consciência histórica (que se tornou para nós uma parcela da nossa autoconsciência e da nossa concepção do humano), o problema só pode ser posto da seguinte forma: o que significa a confissão cristã – “Creio” (Credo) –, nos dias de hoje, dentro das contingências da nossa realidade atual e em seu conjunto? Enfrentemos com profundidade e máxima objetividade a questão que se impõe: que espécie de atitude se pretende quando, primeiro e antes de tudo, uma alma assume ou recebe do Céu o dom da Fé e confessa: “Eu creio”?

Muitas vezes o homem contemporâneo supõe, sem refletir, que qualquer “religião” esteja relacionada à “Fé”, ou até que ambas as coisas – religião e Fé – são uma só e a mesma, e que portanto poderíamos definir qualquer opção religiosa como “Fé”. Isso só pode ser considerado correto, porém, em um sentido específico. Veja-se, por exemplo, que a religião do Antigo Testamento, como um todo, não se apresentava sob o conceito da “Fé”, mas da “Lei”. Era primariamente uma ordem, com o ato da Fé localizado em segundo plano. Ocorre que no Mundo Antigo a crença no invisível constituía a ordem comum e não dependia de uma adesão ou de uma escolha, ao contrário: simplesmente não crer nos deuses e na influência dos seres invisíveis não era opção; a participação nos ritos e na vida religiosa comunitária era parte integrante e indissociável da própria existência humana enquanto tal.

A religiosidade romana, por sua vez, empreendeu sob o nome religio a observância de determinadas formas rituais e costumes: não era decisivo um ato de fé sobre elementos supranaturais, e tal requisito poderia até mesmo estar completamente ausente em determinado cidadão, sem que por isso ele fosse considerado infiel à religião nacional. Por se constituir essencialmente em um sistema de ritos, a observância formal desses mesmos ritos era o elemento decisivo e suficiente. O mesmo poderia se constatar em muitas religiões antigas, senão na sua totalidade.

Essa realidade basta para esclarecer quão pouco natural é, em si, o fato de o cristão exprimir-se fundamentalmente pela palavra “Credo”, designando sua posição frente à vida por uma atitude que provém da Fé.

Com isso, a nossa pergunta só se torna mais importante e até urgente para a compreensão da mesma Fé. Uma vez mais surge a pergunta: que atitude exatamente, afinal, pretende-se manifestar pela palavra “Creio”?

Como se pode notar, a questão é profundíssima e muito ampla, mas precisa ser resolvida – e muito bem resolvida – por todo cristão que pretenda formar-se bem.

Reflita com cuidado e carinho sobre o que foi apresentado até aqui, enquanto aguarda a conclusão com o resumo das respostas que temos para as questões deixadas em aberto, no próximo fascículo. E não deixe de recorrer ao autor do Curso para elucidar quaisquer dúvidas que porventura surjam. Nosso grupo de estudos serve para isso! Deus o ilumine e guarde.

[1] “Homem algum é uma ilha completa em si mesma; todo homem é um fragmento do continente, uma parte do oceano. A morte de cada homem me enfraquece, porque sou parte da humanidade. Ora nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti” (Meditação 17), apud MERTON, Thomas. Homem algum é uma ilha, Rio de Janeiro: Petra, 2021, prólogo.

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