Módulo 3: Ascética e Mística 1 | Seu papel na sagrada Tradição

 


A Tradição apostólica completa e confere autenticidade às Escrituras[1], transmitindo verdades que não estão ditas explicitamente no Texto sagrado, e ademais interpreta essas mesmas Escrituras da maneira autêntica. A Tradição se manifesta pelo Magistério Solene e pelo Magistério Ordinário. Somos colocados, assim, diante de uma questão que ganha especial importância em tempos de crise na Igreja, com os nossos, a qual devemos compreender em detalhes. Vejamos.

1. O Magistério Solene consiste sobretudo nas definições dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Este não se ocupou até hoje, a não ser rara e indiretamente, das questões propriamente ascéticas e místicas; todavia, teve de intervir muitas vezes para esclarecer e dar precisão às verdades que formam a base da espiritualidade cristã, como por exemplo sobre a vida em Deus e a elevação do ser humano ao estado sobrenatural, o Pecado original e suas consequências, a redenção, a Graça comunicada ao homem regenerado, o mérito que aumenta em nós a virtude e aperfeiçoa a vida em Deus, os Sacramentos que conferem a Graça, o Santo Sacrifício da Missa, pelo qual jorram os frutos da redenção, e outros relacionados.

2. O Magistério Ordinário é exercido de duas maneiras: teórica e prática.

a) O ensino teórico nos é dado pelo Magistério Ordinário tanto de modo negativo quanto de modo positivo. De modo negativo pela condenação das proposições dos falsos místicos, das falsas doutrinas espirituais, dos falsos videntes, etc., que se caracterizam pela disseminação de proposições que contrariam as verdades eternas e imutáveis contidas no Depósito da Fé[2], e de modo positivo pela doutrina comum dos Santos Padres e dos teólogos ortodoxos, ou pelas conclusões que se deduzem dos exemplos de vida dos Santos.

  • Encontraram-se, em diversas épocas, falsos místicos que alteraram o verdadeiro conceito da perfeição cristã: são os hereges, muitos dos quais iniciaram movimentos que cresceram e ganharam adeptos (às vezes, muitos), desde os encratitas, os montanistas, os arianos e os pelagianos dos primeiros séculos, passando pelos fraticelos e os falsos místicos alemães do período medieval e os quietistas dos séculos XVII/XVIII, e chegando à pior de todas as heresias já surgidas, a dita “‘teologia’ da libertação”, que não nega uma ou outra verdade da Fé, mas o conjunto da Revelação como um todo, negando a transcendência essencial da espiritualidade cristã e substituindo-a pela mera imanência das ideias econômicas/políticas e questões sociais.

  • Condenando o que é falso, a Igreja desde sempre assinalou as escolhas que devem ser evitadas e o caminho seguro a se seguir. Como fruto desse constante e diligente trabalho de contraposição aos erros e falsidades, foi-se formando, pouco a pouco, uma Doutrina comum sobre todas as principais questões da espiritualidade, que veio a formar como que um comentário vivo dos ensinamentos bíblicos. Encontra-se nos Santos Padres, nos teólogos fiéis e nos bons autores espirituais. Aquele que os estuda não poderá deixar de abismar-se pela unanimidade que se manifesta sobre todos os pontos vitais, no que se refere à natureza da perfeição, aos meios necessários para a alcançar, aos principais estágios que se têm de percorrer. Talvez se encontre um ou outro ponto ainda controverso, mas apenas sobre questões secundárias, e essas discussões não fazem mais do que realçar a unanimidade moral que há sobre os pontos mais importantes.

    A aprovação tácita que a Igreja dá a este ensino comum é para nós a garantia da sua segurança e autenticidade.

b) O ensino prático se encontra, sobretudo, na canonização dos Santos que ensinaram e praticaram tais doutrinas espirituais. Sabe-se com que cuidado minucioso se procedeu à revisão dos seus escritos, bem como ao exame das suas virtudes. Do estudo desses documentos, é fácil deduzir os princípios de espiritualidade sobre a natureza e os meios de perfeição que exprimem a condução da Igreja. Disto nos podemos capacitar lendo a obra de Bento XIV, De Servorum Dei Beatificatione et Canonizatione[3] ou alguns dos processos de Canonização ditos pré-conciliares[4].


5. A razão iluminada pela Fé e pela experiência

A razão natural, sendo como é um dom de Deus absolutamente necessário ao homem para conhecer a verdade, tanto natural como sobrenatural, tem parte muito considerável no estudo da espiritualidade, assim como também no de todos os outros ramos das ciências teológicas e eclesiásticas. Mas, tratando-se de verdades reveladas, é necessário que seja guiada e aperfeiçoada pelas luzes da Fé; e, para aplicar certos princípios gerais às almas, deve-se recorrer ao apoio da experiência psicológica.

    O primeiro cuidado do estudante deve ser o de coletar, inter­pretar e coordenar os dados das Escrituras e da Tradição, os quais, dispersos como se encontram, em diversas fontes, precisam ser reunidos e organizados para formarem um só todo, coeso e ordenado, se possível arquivado para que possa ser consultado sempre que preciso. Além disso, as palavras sagradas foram pronunciadas em tais ou tais circunstâncias, por ocasião de tais ou tais questões, neste ou naquele meio determinado; do mesmo modo, os textos da Tradição foram muitas vezes motivados pelas circunstâncias do tempo e de situações específicas.

    a) Para lhes compreender o alcance, é necessário situá-los no seu meio, aproximá-los de doutrinas análogas, depois agrupá-los e interpretá-los à luz de todo o complexo das verdades cristãs.

    b) Concluído este primeiro trabalho, podem-se destes princípios tirar conclusões, mostrar a sua solidez e as aplicações múltiplas aos muitos pormenores da vida humana, nas situações mais diversas.

    c) Princípios e conclusões serão assim coordenados em uma vasta síntese e formarão uma verdadeira ciência.

    d) É também à razão que compete esclarecer a doutrina ascética aos que quiserem bem compreendê-la, assim como defendê-la contra os seus detratores. Há muitos que a atacam em nome da razão e da ciência, porque são incapazes de ver mais do que ilusão onde há sublimes realidades. Saber responder a tais críticas, apoiando-se na Filosofia e na Ciência, aí está precisamente o papel da razão.

    Sendo a espiritualidade uma ciência que se vive mais do que que se explica, é preciso então mostrar historicamente como ela foi posta em prática; e para isso é necessário ler as boas biografias de Santos – de diversas condições, ambientes, culturas e países –, para verificar de que maneira as regras ascéticas foram interpretadas e adaptadas aos diversos tempos como às diferentes nações, bem como aos deveres de estado de cada um. E é necessário também inteirar-se dos obstáculos que se opõem à prática da perfeição, e dos meios empregados para triunfar sobre eles. São, pois, indispensáveis os estudos psicológicos, e à leitura é preciso juntar a observação.

    É ainda à razão, iluminada pela Fé, que pertence aplicar os princípios e as regras gerais a cada pessoa em particular, tendo em conta o seu temperamento, o seu caráter, a idade, o sexo, a situação social, o histórico de vida, os deveres de estado, bem como também os auxílios sobrenaturais da graça que recebe, sem perder de vista o discernimento.

    Para tal empreitada, torna-se necessário não somente a inteligência aguçada mas também o juízo reto, muita perspicácia e discrição. É preciso juntar o estudo da psicologia prática, dos temperamentos, das patologias nervosas e dos estados mórbidos, que têm tanta influência no espírito e na vontade, etc. E, como se trata de uma ciência sobrenatural, não se deve esquecer que a luz da Fé desempenha aqui um papel preponderante, que os dons do Espírito Santo a completam maravilhosamente; em particular o dom da ciência, que das coisas humanas nos eleva até a verdadeira meditação em Deus, somado ao dom de entendimento que nos faz penetrar melhor as verdades reveladas, o dom de sapiência que no-las permite discernir e desfrutar, o dom de conselho que nos permite a aplicação a cada caso em particular.

    É assim que os Santos, que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus, são ao mesmo tempo os mais aptos para melhor compreender e melhor aplicar os princípios da vida espiritual: eles possuem uma certa conaturalidade para as coisas divinas, que lhas faz melhor perceber e amar: “Escondestes estas coisas dos sábios e dos prudentes, e as revelastes aos pequeninos” (Mt 11, 25).

    Notas:

    [1] Razão que levou Santo Agostinho a escrever sua elucidativa sentença: “Eu não creria no Evangelho se a isso não me movesse a autoridade da Igreja Católica” (Contra a Epístola de Mani 5,6; Contra Fausto 28,2).

    [2] O conjunto das verdades reveladas transmitidas pelos Apóstolos. Sagradas Escrituras e Sagrada Tradição constituem, ambas o Fidei Depositum, isto é, o Depósito da Fé (l Tm 6, 20) que se acha completo e encerrado com a morte do último Apóstolo. Motivo pelo qual nem mesmo as grandes revelações privadas que se produziram no decurso da história do Catolicismo, ainda que dignas de crédito e feitas a Santos eminentes (por exemplo a de Nossa Senhora em Fátima aos Santos Pastorinhos, a do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria, a de Nossa Senhora de Lourdes a Santa Bernadette) não podem exigir de nós um assentimento de Fé divina.

    [3] O original em latim, digitalizado pela Universidade Complutense de Madri, pode ser acessado mediante este endereço: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=ucm.5325117798&view=1up&seq=1

    [4] A respeito das canonizações antes e depois do Conc. Vaticano II, recomendamos a leitura do artigo intitulado “A propósito das canonizações atuais”, publicado na revista Permanência, com apresentação de Dom Lourenço Fleichman OSB, disponível em: https://permanencia.org.br/drupal/node/3554 (acesso em 24/6/2022).

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