Módulo 4: Dogmática 2 | Consequências da Fé


A partir da perspectiva que acabamos de enunciar, aparece-nos a Fé, então, como o primeiro e o mais doce dos deveres do ser humano.


O primeiro dever — somos criaturas racionais e, como tal, devemos render a Deus um culto racional, o que é, aliás, o significado central da Teologia e é exatamente o que nos indica o Apóstolo (Rm 12,1). O homem deve consagrar a Deus, antes de tudo, sua mente, não como quem abdica do dom (recebido de Deus mesmo) que é capacidade de pensar e raciocinar por si, mas como quem confia e tem também dentro de si a profunda convicção de que o Criador do Universo e Doador de todos os bens nos dará saúde mental e paz de espírito para compreender o que deve ser compreendido e aceitar serenamente aquilo que lhe foge à compreensão.


    Ora, crer é homenagear a Deus com a inteligência, por meio da Religião; homenagem que é ainda mais alta quando não cremos os divinos Mistérios por tê-los experimentado ou provado, mas unicamente por haver Deus dito que é assim, por meio da sua Revelação. Nada vemos, nada demonstramos cientificamente; apenas submetemo-nos à Autoridade de Deus: pura homenagem de confiança e filial obediência que faz o crente, “levando cativo todo entendimento à obediência de Cristo” (2 Cor 10, 5; Rm 1, 5; At 6, 7).


    Princípio e fundamento da vida cristã é, pois, abraçar piedosamente, pela Fé, a Verdade, que por misericórdia se revela a nós.


O mais doce dever — longe de reprimir ou limitar, a Fé verdadeira — o crer na Verdade — liberta a alma e o coração daquele que crê realmente. Temos, como sempre tivemos, muitos cegos que falam em “liberdade” querendo nada mais do que um pretexto para que se sintam autorizados a liberar seus instintos, opiniões e apegos particulares, esquecendo-se de que só a Verdade pode libertar o homem (Jo 8,32); fora dela, seremos caricaturas, quando não monstros.


    Ora, a Verdade sobre o homem é que ele foi feito para unir-se a Deus – ou ser e mover-se em Deus, no mais absoluto e estreito convívio de contemplação e amor.

…porque n’Ele vivemos, nos movemos e existimos, como até o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Somos verdadeiramente da sua raça’ (de Deus!)
(At 17,28)[1]

    Esse é um destino absolutamente inaudito, uma concepção da realidade que ultrapassa completamente as nossas forças, mas não é maior que a bondade do Deus-Amor; destino supranatural, cujo indício encontramos já inculcado em nossas mentes no desejo que é comum a todos os homens desde a infância, uma ânsia pelo Absoluto que atormenta especialmente os mais nobres; um desejo que só a posse da Suma Verdade e da Suma Bondade poderá estancar.


    Toda e qualquer tentativa para desabrochar nossa personalidade fora desse destino vai contra a verdade sobre o homem; ao fim, fracassará, embora possam ocorrer temporários aparentes sucessos. O autêntico desabrochar da alma humana consistirá em abrir-se ao nosso radioso destino, em dirigir toda a nossa existência para a bem-aventurança prometida por Deus aos que caminham na Verdade.


    Mais ainda: essa felicidade – cuja simples perspectiva nos deveria fazer exultar de alegria – não a temos apenas em esperança; aprouve ao Deus de Amor que dela usufruíssemos desde esta vida presente, malgrado todas as suas dores e dificuldades; tal é o “mistério de sua Vontade sobre nós” (Ef 1, 9). A mesma Verdade divina que esperamos contemplar face a Face já habita em nossa mente, embora velada, pela Fé que é “o firme fundamento das coisas que se esperam” (Hb 11,1).


    Posse ainda obscura, porém suficientemente real para que nosso espírito conceba não apenas uma ideia abstrata de Deus, mas que se aferre concretamente ao Ser divino, como ao fim beatificante de nossas vidas, pois “as coisas que o olho não viu e o ouvido não ouviu (…) são as que Deus prepara aos que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo seu Espírito…” (1Cor 2,9-10).


    A Fé está para a visão como um primeiro e rústico esboço para uma belíssima obra de arte finamente acabada: “Quando vier Aquele que é perfeito, cessará o que é em parte… porque agora vemos como que por um espelho, em enigma, mas então veremos face a Face” (1 Cor 13, 10-12).


    Belamente compara São João da Cruz a Fé às tochas que os soldados de Gedeão levavam nas mãos, mas não as viam porque as tinham escondidas no escuro do interior dos cântaros. Quebrados estes, apareceu a luz. Assim a Fé contém, qual ânfora, a Luz divina; quebrada pela morte, logo refulge o clarão da divindade que em si escondia.


    Assim definiu a Fé o Concílio Vaticano I:


…a Fé é uma virtude sobrenatural pela qual, sob inspiração e com ajuda da graça de Deus, cremos como verdadeiras as coisas por Ele reveladas, já não por causa da verdade intrínseca percebida à luz natural da razão, mas por causa da autoridade do mesmo Deus que revela e não pode enganar-se e nem nos enganar.


    Fé divina ou teologal é como chamamos à primeira virtude teologal. Fé, porque dispensa a evidência intrínseca da Verdade; temos exclusivamente o divino Testemunho; os mistérios da Religião são verdades cuja existência admitimos, conquanto não os demonstremos e nem mesmo os entenderemos completa e claramente, por ultrapassarem de todo a nossa capacidade intelectual. Assim é, por exemplo, que não concebemos perfeitamente como Deus pode ser a um tempo uno e trino. Assim diz Nosso Senhor: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).


    Fé divina ou teologal e não fé humana, porque esta última é muitas vezes apenas uma opinião incerta, enquanto aquela é certa, firme, estabelecida sobre a rocha sólida que é a Revelação e a própria Verdade; diz-se também divina porque divino é o objeto que atinge: a Verdade incriada, nosso fim sobrenatural e a fonte da nossa santificação.


    Logo, a Fé é uma participação no conhecimento que Deus tem de Si mesmo; é divina, enfim, porque a nossa aquiescência é fruto da iluminação, pelo sopro do Espírito de Deus, que suavemente nos inclina a consentir à Revelação.


    Esta última razão insinua que a Fé é uma virtude sobrenatural. Entende-se por virtude a qualidade moral que nos dispõe habitualmente a fazer o bem; a Fé é, pois, virtude, já que nos dispõe a crer frutuosamente as verdades cristãs. Mas não é virtude puramente humana; antes é sobrenatural, por estar seu objeto acima do poder do nosso intelecto, e porque não podemos adquiri-la por nossos próprios esforços – como as virtudes naturais – mas ela nos é infundida por Deus, embora seu exercício suponha a colaboração do livre arbítrio: cremos também porque queremos crer.


    Contudo o livre arbítrio só poderá inclinar o intelecto a assentir à verdade, misteriosa e divina, quando movido pela Graça. Além disso, para que a mente seja alçada a um nível fora do seu alcance, forçoso é – como veremos mais adiante – que a Graça previna e ajude a inteligência e a vontade; só assim lhes será possível aceitar a mensagem de Deus.


    Virtude teologal: esta qualificação esclarece que tudo, na Fé, refere-se a Deus; Ele é Autor da Fé porque no-la concede por sua Graça, iluminando a mente e inclinando a vontade humana, comunicando-nos sua própria Verdade divina, que é o fim da Fé, porquanto cremos em Deus.


    O texto fundamental de São Paulo aos hebreus indica-nos as verdades que constituem o objeto da Fé:


É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe e que recompensa os que o buscam.
(Hb 11,6)


    Por outras palavras: o objeto da Fé é Deus em Si e na sua Providência. O Apóstolo nos indica esse objeto em generalidade, porque fixa aí um mínimo indispensável à salvação; mas é claro que esse conhecimento sobrenatural de Deus e do que a Ele nos leva pode revestir a pessoa – como de fato sempre revestiu –, de graus bem diversos. Assistimos, no decorrer da história sagrada, a um progresso na manifestação desse mesmo e único objeto: é sempre Deus conhecido, porém Deus vai sendo conhecido mais profunda e detalhadamente.


    Na humanidade primitiva, a existência do Criador era intuída pelas pessoas de boa vontade, através dos seus sinais perceptíveis na natureza das coisas, e estes eram por isso recompensados (a isso se reduz ainda hoje a fé do pagão de boa vontade). Posteriormente, Deus passou a instruir pouco a pouco a humanidade. Revelou-se de modo especial aos Patriarcas, depois a Moisés, mais tarde aos Profetas. Um passo por vez, a grande Verdade vai se descobrindo dos muitos mantos que a recobriam, e muitas cortinas vão se abrindo e permitindo ao homem um vislumbre de sua grandeza.


    É profundíssimo o que o Antigo Testamento nos dá a conhecer sobre a Natureza de Deus e sua Providência. Eis, porém, que Deus, “havendo antigamente falado muitas vezes e de muitas maneiras a nossos pais pelos Profetas, a nós falou nestes últimos dias pelo Filho” (Hb 1,1). E o Filho nos revelou o mais íntimo Mistério de Deus – a Trindade na Unidade – e o mais misericordioso mistério da Providência divina – a Encarnação redentora. É a Revelação definitiva, já não temos que esperar outra, mas apenas a consumação dos séculos.


    Conhece enfim o homem as verdades que está chamado a contemplar e a desfrutar na bem-aventurança, e os meios de chegar a esta.


_______
[1] São Paulo, pregando aos pagãos, retira esta ousadíssima citação dos “Fenômenos de Arato”, poeta originário da Cilícia (séc. III a.C.). Também o estoico Cleanto (da mesma época), em seu “Hino a Zeus”, 5, exprimira-se quase nos mesmos termos [École biblique de Jérusalem, nota da BÍBLIA DE JERUSALÉM].

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