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Os mistérios revelados, como temos visto aqui, ultrapassam tanto o campo da investigação dos sentidos humanos quanto o do seu intelecto; escapam, portanto, a qualquer verificação experimental ou racional; logo, não podem necessitar ou depender destas coisas – como ocorre no caso de uma demonstração científica –, para o seu assentimento. Aí reside sua dificuldade e também a sua maravilha.
Podemos demonstrar o fato da Revelação com argumentos invencíveis (insofismáveis); porém esses argumentos ainda deixarão a base e o fundamento da Revelação mesma intocável no seu inatingível mistério; porque tal realidade não se inclui entre as coisas de tipo matemático, mas repousam, em última análise, sobre o testemunho humano (como o dos Profetas, comunicando o que Deus lhes revelou; dos Apóstolos, atestando a Ressurreição do Senhor, dos Mártires, por seu testemunho, etc.). Tais argumentos, ainda que se ordenem a alturas assim inacessíveis, não constrangem a inteligência humana; sempre seremos livres para negar a eles o nosso assentimento, como sempre seremos livres para duvidar de qualquer testemunho, por mais forte que seja: porque os testemunhos dos santos, dos místicos, dos videntes, dos profetas, dos grandes teólogos e dos Papas santos, por mais fortes que sejam, jamais tornarão presente, como coisa visível e tangível, e fato atestado.
O Primeiro Concílio Vaticano anatematizou a certos teólogos racionalistas, como Georg Hermes[1], os quais ensinavam que, propostas as razões de crer, seguia-se o ato de Fé, do mesmo modo como a conclusão de um raciocínio deriva necessariamente das premissas apresentadas. Isto é, creríamos por ser crível, apenas naquilo que fosse crível, e de modo inescapável. Estaríamos, assim, obrigados pela nossa razão a crer, mediante a obviedade das verdades reveladas. Mas realmente, muito ao contrário, a Teologia da Igreja Católica ensina que permanecemos sempre livres para crer ou não, donos de nosso próprio destino.
Sem dúvida alguma – não será demais repeti-lo – o ato de Fé justifica-se pela razão; temos motivos de credibilidade racional perfeitamente sólidos, como por exemplo: as profecias realizadas por Cristo; os prodígios que Ele realizou; a sublimidade da sua Doutrina; o milagre permanente da Igreja: sua propagação, sua permanência, não obstante todos os obstáculos – a começar pela fraqueza dos seus próprios membros[2] – sua fecundidade; a correspondência entre a Religião cristã e as mais profundas aspirações do homem, o cumprimento das profecias dadas mediante revelações privadas a grandes místicos (aquelas aprovadas pela Igreja como dignas de Fé), etc.
Por isso é que o gigante e sempre saudoso Papa São Pio X, na Encíclica Pascendi, condenou sem meias palavras e bravamente o conceito modernista da Fé como uma espécie de cego instinto religioso, nascendo das profundezas do subconsciente e sem qualquer fundamento racional. A Fé é um ato de inteligência que supõe razões objetivamente válidas de crer.
Todavia, esses argumentos lógicos e racionais que, sim, confirmam a Fé, por mais irrecusáveis que sejam, não são capazes de fazer refulgir a evidência intrínseca dos mistérios revelados; podem apenas confirmar e justificar o nosso dever de crer, persuadindo-nos de que é sumamente razoável aceitar as verdades inevidentes da Revelação. Isto basta àquele que crê. Pois uma verdade que fosse aparentemente irracional ou que contrariasse o senso comum nunca nos constrangeria à aceitação; só a aceitaremos em razão da Autoridade divina que a propõe, mediante a Fé que é um dom do Alto, e ainda assim sempre somos livres para recusar esse inestimável favor, esse nosso ato de respeito e confiança na Palavra divina. Assim, os anjos rebeldes, ainda que vejam as razões de crer que nós não vemos – e as veem claríssimas –, ainda se recusam a curvar-se diante do Onipotente.
Acresce que, por não serem de índole matemática, tais razões de crer estão abertas a dúvidas que, por mais imprudentes que sejam, permanecem sempre possíveis. Por isso é que, com o passar dos tempos, a especulação teológica terminou por desenvolver coisas assim como a chamada Teodiceia. Com efeito, o oposto de uma verdade matemática é simplesmente absurdo, logo impensável, enquanto uma tese oposta à Fé, embora falsa, não nos apareça sempre como totalmente inconcebível e contraditória – justamente porque a Fé é obscura à nossa razão. Resta sempre possível a dúvida imprudente. Competirá, pois, à vontade livre coibir a imprudência e combater contra a tentação da descrença, advertindo o espírito contra a consideração de objeções injustificadas, para concentrá-lo sobre as razões legítimas de crer. E o cristão deve fazê-lo da maneira mais leve, alegre e confiante possível, sabendo intimamente que não se engana, mas que se entrega à Verdade mais pura e sublime, no que será amparado por Nosso Senhor, que é todo amoroso e quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade (cf. 1Tm 2,3s).
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[1] Hermes, Georg (1775 – 1831), sacerdote e influente teólogo católico alemão, foi o criador do sistema teológico denominado Hermesianismo, que tentou demonstrar uma necessidade racional do Cristianismo. Sua teologia foi profundamente influenciada pelas obras filosóficas de Immanuel Kant e JG Fichte. Formado pela Universidade de Münster, foi ordenado em 1799 e mais tarde tornou-se professor de Teologia Dogmática nessa mesma instituição. Em 1819, foi nomeado professor da Universidade de Bonn, de onde suas doutrinas se espalharam por toda a Alemanha. Sua obra “Einleitung in die christkatholische Theologie” (‘Introdução à Teologia Católica’, 1819-29;) procurou estabelecer uma certeza racional para os principais fundamentos da Fé cristã, desde a existência de Deus. Sua “DeleChristkatholische Dogmatik” (‘Dogmática católica’) foi publicada postumamente, em três volumes (1834-35), defendia a necessidade dos imperativos do dever e da consciência para a aceitação dos conteúdos da Fé católica. Seu pensamento foi popular durante sua vida, antes de sua ortodoxia ser questionada. Seus principais escritos foram colocados no Índice de Livros Proibidos, e sua teologia foi condenada pelo Papa Gregório XVI (1835) e reafirmada pelo primeiro Concílio Vaticano I (1869-1870). (Britannica, verb. ‘Georg Hermes’, disp. em: www.britannica.com/biography/Georg-Hermes)
[2] Hoje, quando a Igreja parece realmente eclipsada por uma falsa igreja que ocupou todos os seus espaços, confirmando a profecia de Nossa Senhora em La Salete, é admirável a persistência na luta dos católicos refratários à revolução, tanto entre o clero quanto (especialmente), entre os fiéis leigos. Mesmo depois de mais de 60 anos de ataque contínuo e cada vez mais feroz à sagrada Tradição e ao santo e legítimo Magistério, a Fé católica persiste, o que se configura em uma prova da Revelação e do Favor do Céu, que até o fim dos tempos nunca nos abandonará, ainda que períodos de grande crise sobrevenham.
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