Dissemos já aqui que falar de espiritualidade é tratar de uma ciência que se vive mais do que que se explica, e que portanto é preciso demonstrar como é que se pode vivê-la na prática. Dissemos ainda que, para que isso fosse possível, seria necessário ler boas biografias de Santos – de diversas condições, ambientes, culturas e países –, para verificar de que maneira as regras ascéticas foram interpretadas e adaptadas por essas grandes almas aos tempos (diversos) em que viveram, assim como também às diferentes nações, e ainda aos deveres de estado de cada um. Destacamos que, para tanto, faz-se necessário conhecer os obstáculos que se opõem à prática da perfeição, e dos meios empregados para triunfar sobre eles. Assim é que aos estudos e à boa leitura é preciso juntar a observação da vida e da natureza, como apontava Santo Agostinho em suas Confissões.
Vimos também que cabe à razão, iluminada pela Fé, aplicar princípios e regras gerais a cada pessoa em particular, tendo em conta o seu temperamento, o seu caráter, idade, sexo, situação social, histórico de vida, deveres de estado, tipo de consciência, etc., bem como também os auxílios sobrenaturais da Graça que essa pessoa individualmente recebe. E que, para tal empreitada, torna-se necessário não somente a inteligência aguçada, mas também o juízo reto, sem deixar de considerar, se houver, as patologias nervosas e os estados mórbidos, que exercem influência no espírito e na vontade dos seres humanos. Por se tratar a Ascética Mística de uma ciência sobrenatural, não se deve esquecer que a luz da Fé desempenha nela um papel preponderante, e os dons do Espírito Santo a completam maravilhosamente; em particular o dom da ciência, que das coisas humanas nos eleva até a verdadeira meditação em Deus, somado ao dom de entendimento que nos faz penetrar melhor as verdades reveladas, e o dom de conselho que nos permite a aplicação a cada caso em particular.
É assim que os Santos, que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus, são ao mesmo tempo os mais aptos para melhor compreender e melhor aplicar os princípios da vida espiritual, já que possuem uma certa conaturalidade para as coisas divinas, que as torna capazes de melhor perceber e amar. Estudaremos agora sobre a metodologia da vida interior e suas nuances.
O método que se deve seguir
Para melhor se utilizar as fontes que acabamos de descrever, que método se deve empregar? O método experimental, o método dedutivo, ou a união dos dois? Vejamos melhor essa questão.
O método experimental
Este também se pode denominar descritivo ou psicológico: consiste em observar, em si e/ou nos outros, os fatos ascéticos ou místicos, para deles induzir os sinais ou notas características conforme o estado, as virtudes e disposições que acompanham a cada um; e fazer isso sem levar em conta a natureza ou causa destes fenômenos, sem inquirir se procedem das virtudes, dos dons do Espírito Santo ou de graças especiais. Este método, na sua parte positiva, tem numerosas utilidades, pois é necessário conhecer bem os fatos, antes de se pretender explicar a sua natureza e causa.
Dessa observação podem-se tirar conclusões que até determinem quais os meios práticos que geralmente dão melhor resultado. Todavia, enquanto não se sabe a natureza íntima e a causa desses fatos, trata-se antes de Psicologia que de Teologia. Se somos capazes de descrever minuciosamente os meios de praticar esta ou aquela virtude, não sabemos suficientemente qual a força íntima, o estímulo interior que ajuda a exercitar essa mesma virtude. Daí risco de se cair em opiniões mal fundadas.
Se, na contemplação, não se distingue o que é sobrenatural, como o êxtase, daquilo que constitui o seu elemento essencial, isto é, o olhar prolongado e afetuoso fixado em e Deus, sob a ação de uma graça especial, pode-se daí concluir que toda contemplação é sobrenatural, o que é contrário à Doutrina comum.
Há controvérsias teológicas quanto aos estados místicos, que seriam em grande medida dissipadas se às descrições desses estados se acrescentassem distinções e precisões segundo estudos teológicos. Assim, a distinção entre contemplação adquirida e infusa permite compreender melhor certos estados de alma muito reais e conciliar certas opiniões que, à primeira vista, parecem contraditórias.
Do mesmo modo, na contemplação passiva, há muitos graus: em alguns desses graus, há somente o uso aperfeiçoado dos dons; em outros, Deus intervém para ordenar nossas ideias e nos ajudar a separar delas as conclusões equivocadas: há outros, enfim, que não podemos explicar perfeitamente, senão por conhecimentos infusos. Todas essas distinções são resultados de longas e pacientes investigações, especulativas e práticas.
O método doutrinal ou dedutivo
Consiste em estudar com cuidado o que nos ensina a Igreja – nas Escrituras, na Tradição, na Teologia do Magistério, naquilo que definiu como certo –, acerca da vida espiritual, em particular a Suma de Santo Tomás, e em deduzir daí conclusões sobre a natureza da vida cristã, sua perfeição, suas obrigações e os meios de as cumprir, sem se preocupar especialmente com os fatos psicológicos, quanto ao temperamento e o caráter dos dirigidos, das suas inclinações, dos resultados produzidos sobre tal ou tal alma por este ou aquele meio, e sem estudar a fundo os fenômenos místicos descritos pelos Santos que os experimentaram, como Santa Teresa, São João da Cruz, São Francisco de Sales e outros, ou ao menos sem lhes dar maior importância.
Fato é que estamos sempre expostos ao engano em nossas deduções, assim é prudente submeter nossas conclusões sempre à contraprova dos fatos. Se, por exemplo, verifica-se que a contemplação infusa é muito rara, devem-se fazer restrições à tese sustentada por algumas escolas teológicas, de que todos são chamados aos mais elevados graus da contemplação.
União dos dois métodos
A atitude ideal a se tomar, pois, é saber combinar harmonicamente os dois métodos, conservando-nos entre os dois extremos. Nem concentrar-se exclusivamente nos fenômenos e seus efeitos, nem se ater somente às teorias, mesmo aquelas sabidamente precisas e seguras. Assim como não é possível estudar e elaborar autêntica Teologia sem possuir a Fé, também não é possível conhecer a espiritualidade sem cultivar uma vida interior.
• Os princípios da Teologia Mística, deduzidos das verdades reveladas pelos grandes mestres, isto é, os Santos, os Doutores da Igreja e os teólogos fiéis, nos ajudarão a melhor observar os fatos, a analisá-los de modo mais completo, a ordená-los de maneira mais metódica, a interpretá-los mais criteriosamente; não esqueceremos, efetivamente, que os místicos descrevem as suas impressões, muitas vezes sem querer explicar a sua natureza. Os princípios nos ajudarão também a investigar a causa dos fatos, tendo em conta as verdades já conhecidas, a coordená-los de maneira que deles se faça uma verdadeira ciência.
Por outro lado, o estudo dos fatos ascéticos e místicos corrigirá o que poderia haver de demasiado rígido e absoluto nas conclusões puramente dialéticas; pois não pode haver oposição verdadeira entre os princípios e os fatos. Se, por exemplo, a experiência demonstra que o número dos místicos é muito restrito, não deve haver pressa em se concluir que essa realidade possa derivar e depender unicamente da resistência da alma à Graça.
É útil também refletir por que é que nas causas de canonização a Igreja sempre julgou a santidade de um fiel muito mais pela prática das suas virtudes heroicas do que pelo tanto que se dedicou à vida interior e o estágio que ele tenha alcançado na oração e/ou na contemplação. Esses fatos poderão, efetivamente, mostrar que o grau de santidade não se dá sempre e necessariamente em relação ao gênero e grau de oração.
** No próximo módulo veremos: De que modo fundir em um só estes dois métodos?
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