Lições de São Boaventura[1]
Bem-aventurado o homem, ó Senhor, que de Vós recebe ajuda. Ele dispôs no seu coração os degraus para se elevar deste vale de lágrimas até o lugar onde está o termo de vossos desejos.
A felicidade não é senão o desfrute do Sumo Bem, que é Deus[2]. E o Sumo Bem está acima de nós. Ninguém, por consequência, pode ser feliz senão elevando-se acima de si mesmo, por óbvio não com o corpo, mas com o coração[3]. Mas, para elevarmo-nos acima de nós mesmos, temos necessidade de uma virtude superior. E, ainda assim, quaisquer que forem as nossas disposições interiores, para nada servem se a Graça divina não nos ajudar. Ora, o auxílio divino está sempre ao alcance daqueles que o pedem do fundo do coração, com humildade e devoção. Quer dizer, é dado só aos que, suspirando, voltam-se para Deus, deste “vale de lágrimas” – que é o mundo em que vivemos, cujo príncipe é o Diabo (cf. Jo 16,11) e cujo deus é Satanás (cf. 2Cor 4,4) –
com ardente oração.
A oração é, pois, o princípio e fonte de nossa elevação a Deus. Com efeito, Dionísio, em seu livro acerca da Teologia Mística[4], querendo nos instruir sobre os arrebatamentos da alma, começa primeiro com uma oração. Roguemos, portanto, e digamos ao Senhor nosso Deus: “Conduzi-nos, ó Senhor, em vossa via, e eu caminharei na vossa verdade. Que o meu coração se rejubile no temor de vosso nome (Sl 85,11).
Rezando assim, nosso espírito se ilumina para conhecer os diversos degraus de nossa elevação a Deus. Com efeito, na atual condição de nossa natureza, o Universo é a escada pela qual ascendemos até o Criador. Ora, entre os seres criados, alguns são o vestígio do Criador, outros, ao invés, são sua imagem[5]. Alguns são materiais; outros, espirituais. Alguns são temporais; outros, eviternos[6] . E, por isso, uns estão fora de nós; outros, dentro de nós. Para chegarmos à consideração do primeiro Princípio essencialmente espiritual, eterno e acima de nós, é necessário passarmos pelo vestígio, que é material, temporal e exterior. Isto significa pormo-nos na via de Deus. É necessário que entremos em nossa mente, que é a imagem eviterna de Deus, e é espiritual e está em nosso interior. E isto significa “caminhar na verdade de Deus”. É necessário, enfim, que nos elevemos até o ser eterno, espiritualíssimo e transcendente, fixando o olhar no primeiro Princípio. Isto significa alegrarmo-nos no conhecimento de Deus e na absoluta reverência à sua Majestade.
Tal é a viagem de três dias na solidão[7] dos quais o primeiro pode ser comparado ao anoitecer, o segundo à manhã, o terceiro ao meio-dia.
Com o texto que reproduzimos até aqui, esperamos ter despertado em nossos estudantes o interesse pela maravilhosa obra de São Boaventura, a qual é recomendadíssima para os católicos interessados em Ascética e Mística e certamente não pode ser resumido em uma breve lição. Mas deste início de leitura, o que podemos apreender é algo realmente necessário à nossa busca prática por Deus, a saber:
1. É Deus o Sumo Bem.
A compreensão dessa verdade fundamental da Teologia em um nível não meramente teórico, mas profundamente interior, transforma a vida do crente em todos os sentidos. Porque a raiz de todos os nossos sofrimentos está no engano de transferir nossas esperanças e assim concentrar nossas melhores energias em coisas acidentais, como as criaturas e as experiências deleitosas que podemos encontrar neste mundo. Tais coisas rapidamente se tornam em vias de fuga da realidade, quando esta é árida ou parece dura demais para a nossa sensibilidade.
Santo Tomás diz que Deus é o Sumo Bem de modo absoluto, totalmente e não apenas em determinado sentido ou segundo certa ordem de coisas. Assim, todo bem é atribuído a Deus, enquanto todas as perfeições desejadas d’Ele emanam, pois Ele mesmo é a Causa, a Fonte, a Origem de todo bem, isto é, de tudo que é verdadeiramente bom para nós. Pode parecer coisa simples, mas a importância dessa verdade é tal que, se realmente entendermos e realmente o soubermos =, com plena certeza em nosso íntimo, e se realmente assumirmos essa verdade essencial em nossas vidas, teremos a completa transformação de nossa realidade íntima e, a partir daí, também da realidade que nos cerca. Este é o resultado infalível da vida interior-espiritual bem vivida.
Nada há de mais importante que Deus, porque tudo o mais que nos cerca é temporal, efêmero, mutável e incerto. E todo bem – absolutamente todo e qualquer bem – ao qual possamos nos afeiçoar nesta vida, é dádiva de Deus, só nos é possível mediante a Bondade e a Graça de Deus. Antes de desfrutar de qualquer coisa, só existimos e apenas somos capazes mesmo de desfrutar qualquer coisa por dom de Deus. Assim é que amar a Deus antes e acima de absolutamente qualquer coisa, mesmo nossa própria existência, não só é o primeiro Mandamento e obrigação, mas também é o que somos obrigados fazer por justiça.
A partir do momento em que o cristão alcança este ponto do Caminho sagrado, saberá que o estudo da natureza (ou da Criação), bem como o seu desfrute, só pode fazer sentido como contemplação de Deus, que é seu Criador, Mantenedor e também o seu Destruidor, no tempo oportuno. Tudo aquilo que um dia foi e deixou de existir assim foi e assim deixou de ser por Vontade de Deus, em sua Sabedoria que não podemos alcançar. Por isso diz o verso que abre esta lição: “Bem-aventurado o homem, ó Senhor, que de Vós recebe ajuda. Ele dispôs no seu coração os degraus para se elevar deste vale de lágrimas até o lugar onde está o termo de vossos desejos”. Já temos aqui uma maravilhosa inspiração e fonte para a nossa meditação, que poderá ser repetida diariamente. Plantar e cultivar dentro de si a compreensão de Deus como Sumo Bem e única Fonte de todos os bens para nós.
2. Deus é Quem possibilita crescer interiormente e tudo quanto precisamos. Para que Ele assim nos auxilie, devemos pedir da maneira certa.
Mesmo que tenhamos boa vontade e um desejo sincero, de nada nos servirá se a Graça divina não nos socorrer. E o imprescindível auxílio divino contempla continuamente àqueles que o pedem com amor e com entrega. Com ardente oração, entre suspiros de amor sincero por Deus, o que não é outra coisa senão a consequência do ponto n.1 que acabamos de ver. Pense o estudante na coisa que mais ama: plenamente consciente de que essa mesma coisa só existe por dom de Deus, e que só pode ser conhecida por dom de Deus, e que, antes disso, aquele que conhece e ama só existe, e só existindo pode conhecer e amar a qualquer coisa que seja por dom de Deus, então não há como não amar antes e mais do que tudo a Deus, Fonte inesgotável de graças e de todos os bens.
Se quisermos avançar deste ponto apenas mais um passo, resta lembrar que qualquer bela criatura e/ou todo e qualquer tipo de bem que pudéssemos considerar a partir de nossa experiência enquanto criaturas mortais vivendo em um “vale de lágrimas” que é o mundo ferido pelo Pecado, não passa de pálido reflexo do Criador, de Quem toda criatura e todo bem retira sua existência, encanto e força para ser o que é.
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[1] Trecho da obra de SÃO BOAVENTURA (vide biografia) ampliado e adaptado para esta formação. O PDF do livro está disponibilizado para alunos desta formação neste link.
[2] “Deus é o Sumo Bem, absolutamente, e não só num determinado gênero ou ordem de coisas. Assim, todo bem é atribuído a Deus, enquanto todas as perfeições desejadas d’Ele efluem, como de causa” (STO. TOMÁS DE AQUINO. ST, I, q.6 a.2).
[3] O termo coração (cor, cordis) significa aqui, como desde tempos imemoriais sempre significou, a sede [com sentido de matriz, capital, central] dos sentimentos e das emoções no ser humano, o “lugar” espiritual onde se tece e se une toda a trama afetiva da pessoa. Assim é que na etimologia da palavra “misericórdia” está o verbo “miserere” (compadecer-se): o adjetivo “miser” (pobre miserável, desgraçado, digno de compaixão) junto com o mesmo cordis mais “ia”, que indica qualidade ou virtude. Podemos, portanto, dizer que misericórdia é a qualidade que se traduz em ter o coração (sentimento, sentido da alma) unido (compadecido) à dor dos desventurados, pobres, miseráveis e/ou daqueles que sofrem (cf. ALONSO, Carmen, "La maternidad divina de María, paradigma de la misericordia cristiana", Iglesia y Familia, 37- novembro/2016, pp. 1-10.).
[4] Dionísio. De mystica Theologia e. 1 §1 (PG 3, 998),
apud BOAVENTURA (2012), p.23.
[5] “Vestígio” é basicamente um termo que Boaventura aplica às criaturas, tanto corporais como espirituais, enquanto de longe, mas de maneira distinta, representam a Deus como causa determinada e inconfusa; causa eficiente, formal e final. Os vestígios levam ao conhecimento dos atributos comuns e apropriados de Deus (como o são o poder, a sabedoria, e a bondade). Por isso é possível vislumbrar, por meio do vestígio, o mistério da Santíssima Trindade. “Imagem” é a maneira pela qual uma criatura representa a Deus como objeto de modo próximo e distinto. A imagem considera as propriedades que têm a Deus por objeto. Leva ao conhecimento dos atributos próprios das Pessoas divinas na Trindade (como a paternidade, a filiação etc.). Esta representação só é possível nos seres espirituais. Por meio da imagem, a criatura pode assemelhar-se a Deus pelo conhecimento e pelo amor (cf. Lexicon Bonaventuriano, p.733). Estes conceitos são mais familiares aos leitores de São Boaventura, mas não são fundamentais para a compreensão desta lição. Apud BOAVENTURA (2012), p.24.
[6] Refere-se à qualidade das criaturas espirituais, que não possuem a simultaneidade absoluta de Deus, mas também não estão sujeitas à sucessão do que é composto de matéria. Assim, dizemos de Deus que é eterno; quanto às criaturas, as corpóreas são chamadas temporais; as espirituais, eviternas.
[7] Alusão mística a Êxodo 3,18.
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