Módulo 7: Bíblia 1 | Dogmas sobre a Inspiração


Encerramos o fascículo ou módulo anterior com a conclusão da apresentação  dos principais pontos teológicos concernentes à doutrina da Inspiração divina das Sagradas Escrituras. Agora concluiremos o assunto com a exposição dos pontos dogmaticamente definidos pela Igreja sobre a questão. Na sequência, aplicaremo-nos ao estudo sistemático da canonização bíblica, já antes superficialmente mencionada por nós.



Dogmas sobre a Inspiração 


As Sagradas Escrituras são consideradas como fonte “quase dogmática” para provar a sua própria Inspiração, isto é, só enquanto livro histórico fidedigno que nos narra a Doutrina de Cristo. Assim procede a Teologia para que não se caia no “círculo vicioso” protestante, que ensina que a Bíblia se prova por si mesma e que se configura em um gravíssimo erro, conforme já vimos em nosso fascículo/módulo n.5.

    Demonstraremos agora a existência da Inspiração tal como a expõem os teólogos católicos e como a defendem os documentos da Igreja católica, cujo ensinamento pode-se assim resumir:

        a) Deus Nosso Senhor é o verdadeiro e legítimo Autor literário;

        b) usou, porém, do hagiógrafo como que de um instrumento para escrever;

        c) fez isso por uma ação sobrenatural sobre as faculdades do hagiógrafo, para que escrevesse aquilo que Deus queria.

    Tudo isso se há de encontrar nas fontes teológicas, ainda que nem sempre de modo formal e explícito. Todas essas expressões se devem entender não abstratamente ou dentro de algum sistema, mas no sentido que lhes dá a Tradição.



Documentos eclesiásticos


Os elementos necessários para provar dogmaticamente a existência da Inspiração não se encontram todos em algum ou em cada um desses documentos, e sim no seu conjunto, tomado coletivamente. Os principais, em ordem cronológica, são[1]:


    1) Antiqua Regula Fidei, Denz. Enchir. Bibl. 21.

    2) Statuta Ecclesiae Antiqua, dos séculos V e VI. Enchir. Bibl. 23.

    3) Carta 101ª de São Leão IX, Papa (1049-1054) ad Petrum, Bispo de Antioquia, aos 13 de abril de 1053, Denz. 348; Enchir. Bibl. 26.

    4) Profissão de Fé aos valdenses pelo Papa Inocêncio III (1198-1216) em carta ao arcebispo de Tarracona, aos 18 de dezembro de 1208, Denz. 421. Enchir. Bibl. 27.

    5) Profissão de Fé proposta, em 1267, pelo Papa Clemente IV (1265-1268) ao imperador dos gregos, Miguel Paleólogo, Denz. 464. Enchir. Bibl. 28.

    6) Decreto sobre os jacobitas, promulgado pelo Concílio Florentino, XVII Ecumênico (1438-1445), na Bula Cantate Domino de 4 de fevereiro de 1442 pelo Papa Eugênio IV (1431-1447), Denz. 706. Enchir. Bibl. 32.

    7) Decreto sobre as Escrituras Canônicas, promulgado pelo Concílio Tridentino, XIX Ecumênico, na sessão IV, dia 8 de abril de 1546, sob o pontificado de Paulo III (1534-1548), Denz. 783. Enchir. Bibl. 42.

    8) Constituição dogmática Dei Filius sobre a Fé católica, no capítulo 2 Da Revelação, definida pelo Concílio Vaticano I, XX Ecumênico (1869-1870), na sessão III, realizada a 24 de abril de 1870, sob o pontificado de Pio IX (1846-1878), Denz. 1785-88 e 1809, cânon 4. Enchir. Bibl. 62.

    9) Encíclica Providentissimus Deus sobre os estudos da Sagrada Escritura, de 18 de novembro de 1893, pelo Papa Leão XIII (1878-1903), Denz. 1941-1953. Enchir. Bibl. 66; 109; 110.

    10) Encíclica Spiritus Paraclitus sobre a inerrância da Sagrada Escritura, de 15 de setembro de 1920, pelo Papa Bento XV (1914-1922), Denz. 2186-87. Enchir. Bibl. 561.



Breve comentário dos documentos sobre Inspiração bíblica


    a) O sentido da palavra “autor” nesses documentos fica bem determinado pela oposição à doutrina dos maniqueus, contra os quais a Igreja teve que lutar nos séculos V e VI. Estes diziam que o Antigo Testamento tinha o demônio por autor, o qual teria ensinado umas poucas verdades a fim de fazer acreditar suas muitas mentiras. Ora, no combate que fizeram a estes erros, os Santos Padres deixaram claro o conceito de “autor”, atribuído a Deus tanto para o Novo quanto para o Antigo Testamento. Assim como Santo Agostinho[2], Fócio[3], Eutímio Zigabeno[4].


    b) A palavra dictare (ditar), empregada pelo Concílio Tridentino, significa não só “pronunciar o que um outro vai ouvindo e escrevendo”, mas também “mandar dizer, compor, prescrever, ensinar, aconselhar, sugerir, pronunciar”[5].


        Pelo contexto, vê-se que o Concílio Tridentino usou a palavra “ditar” com o sentido hoje mais usual de “inspirar”.

    c) A Luz divina deve atingir profundamente a inteligência do hagiógrafo, pois da apresentação formal externa depende a comunicação das ideias. Mas quando essa comunicação pode ser feita de vários modos, cabe ao hagiógrafo usar o que lhe apraz. E assim, distinguidos os aspectos, pode-se afirmar que o efeito é todo de Deus e todo do hagiógrafo.

        São fatos dogmáticos tanto a inerrância quanto a excelência dos Livros bíblicos, bem como a sua profundidade que nunca se esgota – algo que assombrosamente todo cristão pode comprovar em sua vida comum, na leitura cotidiana –, pelas quais nenhum outro livro se lhes pode comparar, em toda a literatura mundial.

    • Inerrância é a imunidade de qualquer erro. Os hagiógrafos, de fato, podem ter se utilizado também de fontes humanas e, por isso mesmo passíveis de erro. Mas, antes de subscreverem as sentenças dessas fontes sob o Nome e a Autoridade de Deus, são elevados e corroborados pela Luz divina da Inspiração, que os impede, de direito e de fato, de afirmar um erro. Assim, Deus jamais será autor de inverdades[6].


    • A excelência das Sagrada Escrituras, embora não baste por si mesma para lhe provar a Inspiração, contudo a confirma, e duplamente:

        1) Pelo conteúdo: com descrições históricas sóbrias e fiéis, comprovadas pelo estudo dos documentos históricos extrabíblicos e pela Arqueologia; com a exposição da Doutrina santa e sublime, acomodada a todas as inteligências[7].


        2) Pela origem: o Povo de Israel sabidamente não era dos mais cultos do seu tempo, e alguns dos hagiógrafos possuíam uma cultura intelectual medíocre. O Profeta Amós, por exemplo, era “pastor e cultivador de sicômoros[8]” (Am 7, 14). Daí temos a evidência da profundidade dos conteúdos bíblicos, com uma plenitude de ideias tal que, claramente, nem sempre o próprio hagiógrafo seria capaz de lhes perceber todo o alcance, conteúdos e derivações.



Testemunho dos Santos Padres


Do que já dissemos ficou claro qual tinha sido a doutrina dos Santos Padres a respeito da Inspiração. Para provar que tal doutrina não se encontra apenas em sentenças particulares, mas que se trata de uma proposição eclesiástica comum dos mesmos Padres, apresentamos agora os principais testemunhos.

    Por volta do ano de 230, impugnando Santo Hipólito aos gnósticos hereges, que se diziam os corretores da Sagrada Escritura, assim os repreendia: “Ou não creem ser a Escritura Sagrada inspirada pelo Espírito Santo, por onde são de fato infiéis; ou então, julgando-se mais sábios que o próprio Espírito Santo, não passam de verdadeiros demônios”[9]. Orígenes afirma com segurança que a existência da Inspiração é a doutrina abertamente pregada na Igreja”[10]. Há testemunhos de Santo Atanásio[11], de São Cirilo de Jerusalém[12] e de Santo Agostinho[13], entre muitos outros.


    
Que era esse o ensinamento comum dos Santos Padres, prova-o o fato de eles buscarem sempre, persistente e cuidadosamente, o correto sentido da das mesmas Escrituras Sagradas, e o seu esforço por ensiná-la reta e claramente ao povo cristão.

_____
[1] A lista aqui apresentada é a elaborada por CHARBEL (2022), pp. 44s.

[2] Santo Agostinho (354-430), Contra Faustum Manichaeum (a. 400), 15, 1; ML. 42, 301-3.

[3] Fócio(-891), Contra Manichaeos, 1, 8; MG. 102, 26-7.

[4] Eutímio Zingabeno (circiter 1118), Panoplia dogmatis, 24; MG. 139-1225.

[5] Cf. Forcellini, Totius Latinitatis Lexicon, sub voce “dictare”.

[6] Leão XIII (1878-1903), Encíclica Providentissimus Deus sobre o estudo da Sagrada Escritura, 18 de novembro de 1893: Denz. 1951; Ench. Bibl. 111.

[7] Santo Agostinho (354-430), Epístola 137, 3 e 18: ML 33, 516 e 524.Uma espécie longeva de figueira, de raízes profundas e ramos fortes, cultivada no Oriente Médio e em partes da África há milênios (Dic. Figweb.org, verbete Ficus sycomorus sycomorus Linnaeus 1753), acesso em 22/10/2022.

[8] Uma espécie longeva de figueira, de raízes profundas e ramos fortes, cultivada no Oriente Médio e em partes da África há milênios (Dic. Figweb.org, verbete Ficus sycomorus sycomorus Linnaeus 1753), acesso em 22/10/2022.

[9] Eusébio de Cesareia (265-340), História Eclesiástica (311-325), 5, 28; MG. 20, 516; Enchirdion Patristicum 400.

[10] Orígenes (185-186/254-255), De principiis 1 praefatio 4: MG. 11, 118; Kirch 37.

[11] Santo Atanásio (295-373), Epistola Festalis 39a. (ano 367); MG. 26, 1435; Enchir. Patr. 791.

[12] São Cirilo de Jerusalém (313-386), Catecheses (348), 4, 3; MG. 33, 458, 497.

[13] Santo Agostinho (354-430), Contra Faustum Manichaeum (400), 33, 9, ML. 42, 517.

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