Os gregos simbolizavam em suas esculturas, como vimos em nossa aula anterior, a moderação e o autodomínio só alcançado pelos homens sábios e valorosos. Essa moderação era uma virtude fundamental no ideal masculino, pois os melhores homens não são conduzidos pelos desejos e pela luxúria, nem por isso são reconhecidos ou sempre lembrados, mas sim pela serenidade que advém das virtudes[1].
Já na Sã Doutrina católica, a expressão liberdade é relacionada ao modo de vida dos cristãos, e aparece explicitamente, pela primeira vez, na Carta aos Gálatas de São Paulo Apóstolo. Poucos o sabem, mas trata-se de uma novidade, proposta para a reflexão universal pelo Cristianismo. Sua importância reverberou desde então não só nos ambientes religiosos, mas deixou uma marca profunda na cultura ocidental como um todo. Está dito aí que os seres humanos são chamados à liberdade, em Cristo, Ele que foi tudo para todos, sem ser escravo de nada e de ninguém. O próprio “Apóstolo das Gentes” declara que se libertou total e completamente do seu próprio egoísmo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (2,20).
São Paulo fala do orgulho como excesso de afirmação de si mesmo – em outras palavras, o resultado de uma busca desordenada por liberdade (na ilusão de uma falsa liberdade de fazer tudo o que se quiser), que de fato escraviza e bloqueia a necessária passagem para a maturidade humana e cristã, que citamos antes. Hoje, mais do que nunca, o ser humano cai vítima do pecado da soberba e do orgulho; já não tolera que exista nada nem ninguém acima dele, e assim é que se perde na loucura de renegar a Deus: quer ele ser o centro, quer ele estar no topo, quer ele mesmo tomar todas as decisões e deter todo o poder, seguindo o exemplo do próprio diabo.
A Epístola aos Gálatas alerta para que não façamos da liberdade um pretexto para servir à carne e aos vícios. Enumera uma série de “obras da carne” que escravizam o ser humano: “Imoralidade sexual, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, invejas, bebedeiras orgias” (Gl 5,19-21).
Nada que o ser humano faça por si mesmo poderá, jamais, ser causa ou condição da sua salvação. A verdadeira liberdade, que está no domínio sobre si mesmo – para fazer o que é bom e justo, aquilo que conduz à vida, e não para ceder aos desejos que arrojam aos abismos trevosos da morte eterna –, é fruto da ação do Espírito Santo sobre nós. Ao ser humano se pede a adesão de Fé. Assim é que Santo Agostinho vai definir liberdade como o poder de decisão para o bem. É uma retidão de vida que vale à pena para nós, como vivência da Vontade de Deus que é, igualmente e sempre, o melhor para nós mesmos. Não se trata de conformismo e nem de inércia, ao contrário: quem é verdadeiramente livre em Cristo reconhece as contingências externas, as tendências da carne, e exatamente por isso torna-se apto a superá-las. A luta espiritual é o campo em que a liberdade se realiza, progressivamente.
A verdadeira liberdade faz desenvolver uma atividade intensa, porque coloca o ser humano em tensão com os apelos de sua própria natureza decaída e com os poderes do mundo. A liberdade constrói a unidade da pessoa em todas as suas dimensões: a unidade com Deus, a unidade com o seu próximo e a unidade com toda a Criação.
Um pensamento de Goethe parece expressar bem a essência da liberdade cristã: “É obedecendo que sinto melhor a minha alma em liberdade”[2]. No homem verdadeiramente livre, tanto as ações quanto as reações, e tanto as internas como aquelas exteriores, estão em sintonia com a Verdade. Portanto, estão em harmonia com a Vontade de Deus e a Doutrina de Cristo – posto que Ele mesmo é a Verdade.
Fala Santo Agostinho
A Filosofia busca refletir sobre os problemas mais caros ao homem, por meio da investigação do agir humano, e assim define perspectivas que possam auxiliá-lo a compreender os desafios da vida como um todo. A liberdade é um tema recorrente no estudo de incontáveis filósofos, os quais, cada um a seu modo e em sua época, buscaram demonstrar a noção, a origem e a real apreensão do que seja realmente a liberdade.
Como mencionamos de início, um dos principais debatedores do tema liberdade foi o gigante Santo Agostinho – ou Aurelius Augustinus, o Bispo de Hipona, que viveu de 354 a 430 –, influente pensador desse momento histórico de importante transição, da Idade Antiga para a dita Idade Média. Enriquecido pelo pensamento neoplatônico e bebendo nas fontes da nascente filosofia cristã, escreveu seu nome entre os mais destacados de todas as épocas.
Agostinho expõe o seu pensamento sobre liberdade em várias de suas obras, entre as quais De Civitate Dei e, principalmente em De Libero Arbitrio. Nessa primeira obra, “A Cidade de Deus”, conjectura como a liberdade é um dom de Deus dispensado a todos os seus eleitos, e que está em harmonia com uma certa “‘incapacidade’ para pecar”, pois os bem-aventurados amantes de Cristo já não sentem pesadamente sobre si a atração para o pecado: mas, ainda assim, nem estes estão privados do livre-arbítrio. Ao contrário, é assim mais livre esse arbítrio, pois se vê liberto do atrativo do pecado – até chegar a um atrativo indeclinável por não pecar.
Já em “O Livre-arbítrio”, o Santo toma a liberdade do ser humano como tema principal, bem como a origem do mal moral; para ele, a origem do pecado está no uso abusivo da liberdade, visto que o livre-arbítrio é um grande dom de Deus. Dentro dessa obra, o Bispo de Hipona busca fundamentar origem e causa do pecado, bem como esclarecer qual a responsabilidade humana em acordo com a prática de seus atos livres. Tais esclarecimentos resultam da motivação de refutar o pensamento maniqueísta, haja vista o grande Santo estar, nesse ponto, já em um estágio avançado da sua conversão, buscando explicar a origem do mal no agir humano.
O mal, segundo Agostinho, pode ser examinado a partir de três enfoques ou pontos de vista: o metafísico-ontológico, o moral e o físico. Interessa-nos aqui retratar o mal pelo enfoque moral, já que é este o pecado, “aversio a Deo” e “conversio ad creaturam”, que se perfaz na escolha incorreta dos bens. Simplificando tudo, recebemos de Deus uma vontade livre, não impositiva, que é para nós um bem imenso; o mal que praticamos é resultado do mau uso dessa grande dádiva.
Essa relação entre o livre-arbítrio, o mal e a liberdade, expressa no pensamento de Santo Agostinho, descreveu com propriedade o grande Etienee Gilson, da seguinte maneira:
Duas condições são exigidas para se fazer o bem: um dom de Deus, que é a graça, e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio não se quereria o bem ou, se o quisesse, o homem não conseguiria realizá-lo. A graça, portanto, não tem efeito de suprimir a vontade, mas de torná-la boa, pois ela se transformara em má [após o Pecado original]. Esse poder de usar bem o livre-arbítrio, ainda que haja o poder de não fazê-lo, é a marca da liberdade. A possibilidade de se fazer o mal é o grau supremo da liberdade.
(GILSON, 1929, p. 202ss)
Portanto, o pensamento de Santo Agostinho sobre a liberdade atravessa gerações e mantêm-se em voga no que tange à reflexão sobre o mal e a implicação do livre-arbítrio em nossas condutas, em todos os ambientes, fazendo-se presente e digno de estudo até mesmo nos ambientes mais progressistas, modernistas e/ou mesmo revolucionários.
Valorizar cada situação, cada dádiva e mesmo cada obstáculo, isto é, cada oportunidade que Deus nos concede durante a sua existência neste mundo, permite ao ser humano um maior aproveitamento de cada um dos seus atos e lutas, para o bem, mesmo que a inclinação para o mal esteja presente. Este é o correto e vantajoso uso de nossa liberdade.
_________
[1]. Ref.: Portal ‘Observador’, disp. em: https://cutt.ly/vNmwLhU | Acesso em 18/10/2022.
[2]. Apud Jönck, Dom Wilson Tadeu. Liberdade Cristã, Jornal da Arquidiocese de Florianópolis n.282, 9/2021, p.2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Por favor, identifique-se com seu nome ou um apelido (nickname) ao deixar sua mensagem. Na caixa "Comentar como", logo abaixo da caixa de comentários, você pode usar a opção "Nome/URL".
** Seu comentário poderá ser publicado em forma de post, a critério dos autores do blog Fiel Católico.
*** Comentários que contenham ataques e/ou ofensas pessoais não serão publicados.