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Depois de nos debruçarmos sobre o problema da liberdade cristã e o livre arbítrio, precisamos entender que o influxo desse mesmo livre arbítrio não é peculiar exclusivamente à Fé religiosa; verifica-se também em relação a todas as verdades que repercutem sobre a nossa vida moral. Já Leibniz (imagem)[1] observou, com sabedoria, que se as matemáticas tivessem consequências éticas, o homem logo tentaria pô-las em dúvida. Não é tão paradoxal, como parece, o dito de Pascal: “Ao que não ama a Deus é impossível ser convencido da verdade da Igreja”[2].
Queria ele significar que, para aceitar o Mistério da Igreja, devemos antes retificar a nossa vontade em relação ao fim supremo, porque, se esse fim nós o colocamos fora de Deus, é claro que essa disposição vai influir sobre nossa inteligência, levantando uma nuvem de sofismas que nos impedirão de perceber a credibilidade da Igreja. Básico. Claro que é um trabalho bastante árduo entregar-se a uma Verdade tão exigente como é a do Evangelho; é terrível dizer, mas é muito mais fácil sufocar a inspiração da Graça divina em nós do que aceitá-la sem nenhuma resistência. Muitos, em tais questões, facilmente procuram persuadir-se de que seja falso ou pelo menos duvidoso aquilo que, no fundo, não desejam que seja verdadeiro.
Ao contrário, uma vontade reta e acolhedora colocará a inteligência na melhor posição possível para descobrir a verdade moral; pois o amor à verdade é a melhor ferramenta para encontrá-la. Assim, a participação da vontade na Fé religiosa não tem por finalidade suprir uma suposta deficiência das razões de crer, mas sim de fazer com que o intelecto lhes perceba melhor a validade.
A necessidade da preparação moral à Fé se nota com facilidade na história das conversões. Entre vários outros exemplos, citamos o de Charles de Focauld: após uma adolescência e primeira mocidade ímpias, escandalosas até, esse ex-oficial de cavalaria e explorador do Marrocos, que apesar de seus desvarios conservava nobre sua alma, começou a sentir na alma certa inquietação, certo desejo de virtude. O exemplo de parentes seus, que não apenas professavam de boca, mas viviam o Catolicismo, leva-o a suspeitar de que talvez na Religião encontrasse a Verdade. Implora, então, humilde: “Meu Deus, se Vós existis, dai-me a conhecer!”.
Entende então Focault que, para chegar à Fé, falta-lhe instrução religiosa; certa manhã, apresenta-se ao confessionário, e um sacerdote de excepcional virtude, o Abade Huvelin, o atende. Sem se ajoelhar, o buscador da Verdade declara: “Senhor Padre, não tenho fé; venho pedir-lhe que me instrua”. O padre então o fita com firmeza e diz: “Ponha-se de joelhos, confesse-se a Deus e encontrará a Fé”. A isso, tentou retrucar Focault, hesitante: “Mas eu não vim para isso...”, no que foi cortado pelo padre: “Confesse-se!”. Sentiu então Focauld que a acusação dos seus pecados era, para ele, uma condição da Luz.
Ajoelhou-se confessou todos os pecados da sua vida. Recebeu, então, tamanho dom de Fé que, em breve, transformou-se num dos mais espantosos heróis cristãos de todos os tempos[3].
O que impele a vontade humana a buscar a Deus é o fato de a Fé ser muitas vezes apresentada como um bom motivo, por ela mesma, como um bem desejável por si. Todavia, o Deus que a Revelação manifesta não é apenas objeto de pensamento, é também o fim concreto em função do qual toda a vida humana deve se organizar. Nada menos! Tal fim beatificante deve apetecer à alma, ao menos às almas sensatas, honestas, puras. Longe de ser algo frio e impessoal, como o saber científico, a Fé é a atitude pessoalíssima de um espírito que livremente se abre à Verdade divina, por confiar n’Aquele que dá testemunho de Si mesmo.
A razão justifica, sim, o ato de Fé, mas a razão não é a força que nos impele a produzir esse ato, não apenas pelo fato de a Revelação ser misteriosa e permanecer-nos em grande medida oculta, como também porque esta nos apresenta uma doutrina de vida e não só uma verdade teórica. Belas verdades teóricas temos muitas, em diversas e distintas religiões pagãs, que porém não contém a Verdade da nossa salvação: “Escrevemos a fim de que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu Nome” (Jo 20,3).
É claro que a Mensagem evangélica visa, além do intelecto, a pessoa toda, pois é esta que vive. Portanto, dependerá muito da atitude que cada pessoa adotará diante dessa vida nova – a “vida divina” que se lhe oferece –, a aceitação ou a rejeição da Doutrina. A quem deseja a Verdade e a Vida, logo se lhe apresentarão argumentos justificativos da crença; a quem não a deseja, não convencerão nem as mais sólidas razões e nem mesmo os mais portentosos milagres, como já vimos aqui. É a honestidade da alma que leva à Verdade da Religião autêntica.
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[1] Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 — 1716), cientista e filósofo alemão de grandes realizações no campo da Matemática, com importantes contribuições para a Física e para a tecnologia, cuja obra antecipou noções que surgiriam muito mais tarde na Filosofia, na teoria das probabilidades, na Biologia, na Medicina, na Geologia, na Psicologia, na Linguística e até, posteriormente, na Informática. Escreveu sobre Filosofia, Política, Direito, Ética, Teologia, História e Filologia. Seu trabalho com o sistema de números binários veio a se tornar a base dos computadores digitais. Em Filosofia, é conhecido por sua conclusão de que nosso Universo é, em sentido restrito, o melhor de todos os mundos possíveis que Deus poderia ter criado, uma ideia ridicularizada por figuras como Voltaire. Leibniz, juntamente com René Descartes e Baruch Spinoza, foi um dos três grandes defensores do racionalismo no século XVII. Seu trabalho antecipou a lógica moderna e a filosofia analítica, mas sua filosofia também remete à tradição escolástica, na qual as conclusões são produzidas aplicando-se a razão aos primeiros princípios, e não às evidências empíricas.
[2] Apud PENIDO (1956), p.21.
[3] O resumo da história de conversão de Focauld é de PENIDO (1956), p. 22.
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