Módulo 10: História da Igreja 1 | O Pentecostes


Com muitas e poderosas provas da Ressurreição, os fiéis de Jesus Cristo tinham sérios argumentos para entrar em choque com os seus compatriotas judeus. Todavia a força necessária para sustentar os seus argumentos contra a opinião geral, a qual rejeitava o messianismo de seu Mestre, com o enfrentamento muitas vezes violento às autoridades judiciais da época, na forte oposição da parte dos rabinos e do dominador romano, precisava ainda de um grande incentivo, uma outra força motivadora que viria com o cumprimento de uma promessa especialíssima do Cristo: “Eu vos enviarei o Paráclito, e quando Ele vier, convencerá o mundo a respeito do pecado, da justiça e do juízo (...) Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, Ele vos ensinará toda a verdade” (Jo 16, 7-1 3).

No dia de Pentecostes cumpriu-se mais essa promessa.


Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. (At 2,1-4)


Para compreendermos o sentido deste grande Mistério , é preciso considerar a antiga tradição profética judaica, da qual esses homens estavam impregnados. A efusão do Espírito Santo devia ser o último sinal da era messiânica. O Messias, o Cristo, o Ungido de Deus, fora concebido desde sempre como Aquele que traria o Espírito, e este Espírito devia espalhar-se à sua volta, transformando o mundo e conclamando os homens para um novo tempo e uma nova vida. 


Eu vos darei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Dentro de vós colocarei meu Espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos. Habitareis a terra de que fiz presente a vossos pais; sereis meu povo, e serei vosso Deus. (Ez 36,26ss.)


A vinda do Espírito Santo selava esse novo tempo, essa renovação do mundo e o novo pacto selado com Deus, trazido pelo Cristo em Pessoa, Deus mesmo feito homem. A partir desse momento, aqueles homens já não eram mais apenas membros de uma simples comunidade humana, uma fraternidade muito especial, mas de um organismo ao mesmo tempo humano e sobrenatural, formado de almas escolhidas por Deus, completamente renovadas e prontas para assumir todos os riscos em defesa da sua fé – a única e verdadeira Fé. Um organismo que se chamaria Igreja[1].


Todos os textos primitivos mostrarão a importância desse fato . “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, este não é d’Ele“ (Rm 8,9), dirá São Paulo. Por sua vez, também o primeiro Papa reconheceu, ao pregar sobre a conversão dos pagãos: “Porven­tura pode-se negar a água do Batismo a estes, que receberam o Espírito Santo como nós?” (At 10,47). 

A partir do evento Pentecostes, a Fé dos fiéis em Cristo tinha-se tornado não só inabalável, mas arrebatadora. Esses homens tinham pressentido que, do seio da comunidade judaica, o antigo “povo eleito”, eles constituíam uma nova raça, um povo régio, destinado a fecundar toda a Terra. Havia uma nova esperança e um júbilo incontido no ar; a Igreja trazia dentro de si uma força que lhe dava uma coragem e uma audácia nunca vistas. 

Foi o que se manifestou após a efusão do Espírito. O ruído do fenômeno atraiu uma multidão, pois a festa de Pentecostes trouxera muitos visitantes a Jerusalém, e o espetáculo daquela agitação, bem como os discursos poliglotas inexplicáveis daqueles homens, faziam despertar admiração, sem faltar o desprezo de alguns que diziam: “Estão todos embriagados de vinho...” (At 2,13). Pedro, porém, levantou-se e encarou a multidão. Ele já não tinha medo; por nada voltaria a negar o Mestre. Foi então que, pela primeira vez, gritou a sua Fé agora inquebrantável em Jesus o Cristo. Começava naquele instante a História da Igreja, com essa primeira declaração apologética, que inevitavelmente representava também uma declaração de guerra ao mundo inteiro. “Não julgueis que vim trazer a paz à Terra. Vim trazer não a paz, mas a espada” (Mt 10,34). Não porque a Igreja ame a guerra ou odeie o mundo, mas porque o mundo odeia intensamente a Igreja, e isso é inevitável. A própria existência da Igreja é para o mundo ofensiva, e o mundo fará de tudo para extirpá-la, destruí-la, sufocá-la até a morte, de um jeito ou de outro. Por isso, desde sempre ensinaram a mesma coisa os Pais da Igreja, os Doutores e os Papas santos, como brilhantemente resumiu o santo Arcebispo Fulton Sheen: 


Se eu não fosse Católico e estivesse procurando a verdadeira Igreja no mundo de hoje, eu iria em busca da única Igreja que não se dá muito bem com o mundo. Em outras palavras, eu procuraria uma Igreja que o mundo odiasse. Minha razão para fazer isso seria que, se Cristo ainda está presente em qualquer uma das igrejas do mundo de hoje, Ele ainda deve ser odiado como o era quando estava na Terra.

Se você tiver que encontrar Cristo hoje, então procure uma Igreja que não se dá bem com o mundo. Procure por uma Igreja que é odiada pelo mundo como Cristo foi odiado pelo mundo. Procure pela Igreja que é acusada de estar desatualizada com os tempos modernos, como Nosso Senhor foi acusado de ser ignorante e de nunca ter aprendido. (...) Procure a Igreja a qual os homens dizem que deve ser destruída em nome de Deus, do mesmo modo que os que crucificaram Cristo julgavam estar prestando serviço a Deus.

Procure a Igreja que o mundo rejeita porque ela se proclama infalível, pois foi pela mesma razão que Pilatos rejeitou a Cristo: por Ele ter se proclamado a si mesmo A Verdade. Procure a Igreja que é rejeitada pelo mundo, assim como Nosso Senhor foi rejeitado pelos homens. Procure a Igreja que em meio às confusões de opiniões conflitantes é amada por seus membros do mesmo modo como amam a Cristo e respeitem a sua voz como a voz do seu Fundador.

E então você começará a suspeitar que se essa Igreja é impopular com o espírito do mundo é porque ela não pertence a esse mundo, e uma vez que pertence a outro mundo ela será infinitamente amada e infinitamente odiada como o foi o próprio Cristo. Pois só aquilo que é de origem divina pode ser infinitamente odiado e infinitamente amado. Portanto, essa Igreja é divina.[2]


Cite-se de passagem o quanto andam longe de suas origens, às quais dizem retornar, tantos dos nossos pastores de hoje, que procuram fazer amizade com o mundo mascarando a Sã Doutrina e as duras verdades ditas por Nosso Senhor por receio de ferir a sensibilidade de homens ímpios. Mas todo aquele que quiser conhecer os inícios da Igreja, a infância da Cristandade, na vida dessa primeira comunidade que abrigou à custa de muitas vidas a verdadeira mensagem do Evangelho, encontrará no Novo Testamento o documento mais importante, o Livro intitulado de “Atos dos Apóstolos”.


Os Atos foram escritos em Antioquia ou em Roma, bem pouco tempo após os acontecimentos que descreve – certamente sua redação tenha ocorrido na década de  60, por São Lucas[3], que, sem ser testemunha direta da Ressurreição, encontrava-se plenamente inteirado (e profundamente influenciado) da mais viva Tradição apostólica. Nosso interesse neste Livro sagrado em particular é incomparável, mas como documento histórico é bastante incompleto, já que seu santo Autor, por mais consciencioso que fosse, não pôde conhecer nem concatenar todos os fatos; sua origem e suas ligações pessoais induziram-no a tomar em consideração mais a ação deste ou daquele Apóstolo do que os fatos em visão de conjunto. Além disso, como acontece com todas as obras do Cristianismo primitivo, não há a intenção de satisfazer nossa curiosidade histórica, mas sim a de propagar a Fé que salva.


No entanto, ainda que não se encontre nessa obra aquele brilho que, nos Evangelhos, emana diretamente da Pessoa de Jesus; todo o relato torna bem sensível o imenso vazio deixado pelo desaparecimento do Mestre. Em que outro texto poderemos encontrar uma imagem mais doce e mais entusiasta de um Cristianismo quase isento das servidões do mundo, apesar das misérias inerentes à nossa natureza, e que procura estabelecer sobre a Terra o Reino de Deus?


Quantos eram aqueles primeiríssimos fiéis? É quase impossível dizer. São Lucas, nos Atos (1,1 5 ), cita o número de cento e vinte, e São Paulo fala-nos de quinhentas pessoas que, juntas, viram aparecer-lhes Jesus ressuscitado (cf. 1Cor 15,6). Mas, além de que estes dados se referem a uma época ainda muito inicial (semanas que se seguiram imediatamente à Morte de Cristo), nada prova que se tratasse de todos ou da maioria dos membros da comunidade nascente. Depois do primeiro discurso de São Pedro, dizem-nos os A tos que três mil pessoas aderiram de uma só vez à nova Fé (cf. At 2,41), e um pouco mais tarde fala-se já de cinco mil adeptos. Pensando que Jerusalém contava alguns milhares de fiéis por volta dos anos 35 ou 37[4], mas que isso era ainda uma fraca minoria na cidade, devemos estar perto do fato histórico.


Também só podemos ter ideia aproximada quanto à organização. Não se pode pôr em dúvida que tal organização existisse, porque todo empreendimento humano necessariamente a pressupõe; o bom êxito do Cristianismo no plano temporal prova que o seu desenvolvimento obedeceu a essa lei inescapável da realidade histórica, segundo a qual um movimento, para se desenvolver, precisa de quadros sólidos, de uma ordem de comando, de um método de ação, e aqui, tudo em estreita relação com a Doutrina. O próprio Jesus havia já transmitido essas estruturas aos seus discípulos: um dos aspectos admiráveis de sua atividade sobre a Terra, que transparece dos Evangelhos, é o esforço prático de organização e de instrução que realizou, e cujos efeitos se prolongaram até os nossos dias. Tudo nos prova que Jesus, Deus-homem, sabia perfeitamente que, para sobreviver, a sua obra teria necessidade das instituições humanas. Por motivos óbvios, não é este o aspecto mais estudado da vida e obra do Cristo; no entanto, assim como tudo que lhe toca, é admirável, e talvez aquele que mais se relaciona com o futuro. Jesus não foi apenas o Maravilhoso Salvador das almas, o Autor da Sã Doutrina e a Vítima sobrenatural que conhecemos; revelou-se também  mais sábio dos fundadores, o mais completo dos educadores e o mais eficaz dos homens de ação. Deu aos seus discípulos uma excelente escola de líderes, e ensinou-lhes uma estratégia funcional. Podemos dizer que a Igreja nasceu de Cristo em todos os sentidos; tanto os dogmas como as instituições que veremos desenvolver-se no decorrer dos séculos têm suas raízes nos seus ensinamentos, e desde o início essa Igreja apresenta um duplo caráter que se conservará até os nossos dias (e que torna a sua história tão difícil de abarcar): o de ser, ao mesmo tempo, uma manifestação de Fé, o Corpo Místico do Filho de Deus e um conjunto de instituições humanas, igualmente queridas por Deus. 


Nessa comunidade primitiva distinguem-se bem os. fundamentos institucionais criados por Cristo. Colhemos a impressão de que os Apóstolos, suas primeiras testemunhas, aqueles que Ele mesmo “designou e estabeleceu”, gozam de uma grande autoridade moral. O número de doze, a que Jesus limitou o seu pequeno grupo, tem certamente o valor de um sinal, porque, assim que se tornou conhecido o suicídio do Iscariotes, e antes que tivesse assoprado o vento sagrado do Pentecostes, Pedro pediu aos outros que o substituíssem de comum acordo; tendo o Colégio Apostólico proposto dois candidatos, “deitaram sorte” e o Espírito Santo designou Matias (cf. At 1,15-26). Entre os Doze, Pedro claramente ocupa o primeiro posto. Vemos como ele assume diversas vezes a liderança, como fez aqui mesmo, por ocasião dessa eleição: é ele quem toma as iniciativas, e a sua opinião sempre tem maior peso. Além dele, apenas João, filho de Zebedeu, parece destacar-se entre os demais. Tal preeminência de Pedro, cuja importância será considerável quanto às suas consequências na história cristã, assenta também sobre uma declaração expressa do Mestre, que quis dar à sua fundação um princípio hierárquico; Cristo nitidamente designara como “a Pedra sobre a qual se edificaria a sua Igreja” este homem de coração generoso.


Junto dos Apóstolos, há ajudantes e assistentes, algo como “apóstolos de segundo escalão”. Seriam a origem daqueles presbíteros que encontraremos mais tarde em todas as comunidades cristãs? Qual era exatamente a sua função? Não é fácil precisá-lo. Temos também a impressão de que , ao lado da autoridade apostólica, existe na comunidade de Jerusalém, talvez num plano diferente, a autoridade de outros personagens, principalmente a de Tiago, “o Irmão do Senhor” , isto é, um de seus primos em primeiro grau. Eusébio, o primeiro dos historiadores cristãos, ao recolher no século IV tradições diferentes das contidas nos Evangelhos e no Livro dos Atos acerca dessas remotas origens, insistirá sobre o papel deste santo personagem, que “não tomava vinho nem qualquer bebida que embriagasse, nem nada que tivesse tido vida (...) e cuja pele se tornara calosa nos joelhos como a dos camelos, de tanto permanecer ajoelhado em oração”[5].

_________
[1] Termo que tem origem vocábulo no grego ekklesia, que significava originalmente uma assembleia de cidadãos livres e que foi adotado pelos Autores sagrados do NT para referir a essa Nova (e eterna) Aliança entre Deus e o Povo Eleito. Com o passar do tempo, a palavra igreja adquiriu também o significado de templo, isto é, da edificação dedicada ao culto religioso dos cristãos. Na época em que Nosso Senhor Jesus Cristo caminhava sobre a Terra, havia três instituições em Israel: o templo, a sinagoga e a ekklesia. As duas primeiras tinham um caráter religioso, mas correspondiam a construções concretas. Já a terceira se referia a uma assembleia de cidadãos, e esta por sua vez não tinha relação com nenhuma edificação religiosa. A partir do NT, o ekklesia foi adotado para referir à comunidade de pessoas que seguiam criam em Jesus Cristo e em seu Evangelho, seguindo a doutrina dos Apóstolos. Em Mateus, Jesus se dirige a Pedro e diz: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mt 16,18). A missão central da Igreja consiste em convocar todas as nações e todos os homens ao Reino de Deus, e assim, em obediência ao Mandamento de Cristo, a partir desta comunidade o Evangelho passa a ser proclamado aos quatro cantos do mundo (cf. Mt 16,15-20).


[2] SHEEN, Fulton John. Radio Replies Vol. 1, p IX, Charlote: Tan Publishing, 1979.


[3] O Livro termina com o cativeiro de São Paulo Apóstolo, datado em 61/63 d.C., sendo que sua composição deve ser pouco posterior à do terceiro Evangelho, do mesmo autor, antes de 70 d.c. São Lucas Evangelista não conheceu Jesus pessoalmente e nem foi seu discípulo direto. Muitos, por causa de seus escritos, imaginam que tenha pertencido ao primeiro grupo dos discípulos de de Cristo.


[4] DANIEL-ROPS (1988, p.20).


[5] Apud DANIEL-ROPS (1988, p.22).

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