
Já saberá nosso estudante responder da maneira mais sucinta à pergunta “o que é a Mística”? Em uma frase, a Mística é o conhecimento experimental de Deus. Guarde-se bem isso na memória. Já não se trata de conhecimento teórico, o qual se pode adquirir por meio da leitura de bons livros, sobre o qual se pode raciocinar, refletir e elucubrar, desenvolvendo compreensões e teorias sobre certas verdades de Fé, mais ou menos corretas e que vão se aperfeiçoando na vida de estudos. A Mística é um conhecimento, de fato, experiencial. A Vida de Deus começa a se tornar realidade na vida da pessoa, do cristão, na alma devota, que já entra em um estado místico e extraordinário.
Ainda que se trate de um estado dito extraordinário, porque avança além do estado ordinário, isto é, mais comum, trivial ou corriqueiro das almas, não se trata de estado exclusivo das almas escolhidas, mais perfeitas, especialmente agraciadas, as quais fariam parte de uma espécie de “elite” espiritual. Lagrange diz que o estado místico não é feito somente para pessoas possuidoras de certos dons ou capacidades especiais, mas sim para todas as pessoas que verdadeiramente querem percorrer o caminho cristão, querem viver uma vida efetivamente católica em sua perfeição, até o seu fim – a escalada da montanha até o cume. Diga-se de passagem que, para tanto, importa que tais almas precisam manter-se bem conscientes de suas imperfeições, defeitos, fraquezas.
Já os iniciantes nessa escalada seguem pela via da purgação passiva, a qual explicaremos mais adiante. Na Ascese, que é o primeiro passo para se atingir a Mística, Deus espera de nós a prática das virtudes, especialmente as teologais: fé, esperança e caridade, em conjunto com as virtudes morais ou cardeais[1]: prudência, justiça, fortaleza e temperança –, e da prática das Bem-aventuranças. Assim, 1) quem se fizer pobre em espírito* herdará o Reino dos Céus; 2) os que choram (por amor à justiça) serão consolados; 3) os mansos herdarão a Terra; 4) os que têm fome e sede de justiça serão saciados; 5) os misericordiosos alcançarão misericórdia; 6) os puros de coração verão a Deus; 7) os pacificadores serão chamados filhos de Deus; 8) dos que sofrem perseguição por causa da justiça é o Reino dos Céus, 9) os que são injuriados, perseguidos e caluniados por causa de Cristo receberão uma grande recompensa no Céu.
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Neste início de nova fase de aprendizado em Teologia Ascética e Mística, cada módulo deverá ser profundamente meditado para que se alcance a compreensão profunda que essas disciplinas especialmente exigem. Procure ter bem apreendidas as realidades aqui apresentadas até a disponibilização da nova aula, pois todo o conteúdo exposto se coadunará perfeitamente, completando um conjunto coeso de conhecimentos que dará ao estudante a possibilidade de alcançar sabedoria e grande progresso espiritual.
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* “Pobres de espírito” é a tradução mais conhecida da primeira bem-aventurança. Infelizmente, trata-se de uma expressão que, com o passar do tempo, foi perdendo completamente o seu sentido original. Hoje, quando dizemos que “fulano é pobre de espírito”, frequentemente estamos querendo dizer que se trata de uma pessoa medíocre, fraca, bruta, insensível... ou alguém de entendimento limitado, sem criatividade. Pobre de espírito, no entendimento popular, acabou por ganhar um significado oposto ao sentido do Evangelho. Já no dicionário Aurélio, a expressão traz a seguinte definição: “Pobre de espírito: Pessoa simplória, ingênua, parva, tola”. Cristo não disse que o Reino dos Céus pertence aos insensíveis e limitados, ou aos simplórios, parvos e tolos. Algumas traduções posteriores tentaram resolver o problema mudando a forma para “pobres em espírito”. Na linguagem escrita, um mero acento ou vírgula já é capaz de mudar completamente o sentido de uma frase, quanto mais a troca de uma preposição. Mas a verdade é que essa forma ainda não tornava possível alcançar o sentido do texto original. A expressão “pobres de espírito” foi traduzida para o português, assim como para vários outros idiomas, principalmente baseada na tradução do grego existente na Vulgata latina, feita por S. Jerônimo. Esta foi a única tradução conhecida, por séculos, em toda a comunidade cristã ocidental. Isto acabou imprimindo na memória de milhões de pessoas a ideia do Reino dos Céus vindo a ser herdado pelos “pobres de espírito”, concepção passada de geração para geração. Já a tradução bem mais recente da editora Vozes (sob a coordenação geral do Prof° Dr° Ludovico Garmus), assim como a da Editora Ave Maria (para o francês pelos Monges de Maredsous, beneditinos da Bélgica), podem ser consideradas confiáveis dão um significado diferenciado às palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que têm um espírito de pobre, porque deles é o Reino dos Céus!” e “Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos Céus!”, respectivamente. De fato, o conteúdo do texto original, em grego, traz (transliterado): “Makarioi oi ptwcoi tw pneumati oti autwn estin h basileia twn ouranwn”. Assim como ocorre com outras línguas, algumas palavras e expressões do grego têm um significado difícil de traduzir. A questão toda se encerra nas palavras “ptwcoi tw pneumati”. “Ptwcoi” vem de “ptochos”, que significa, literalmente, ”mendicante”. Na versão traduzida para o latim, “ptwcoi” virou “pauper”, e daí chegou ao português como “pobre”. Mas o sentido de pobre, no grego, não está na raiz “ptochos”, mas sim em “penia”, que significa pobreza. Daí deriva a palavra “penúria”.
“Ptochos” alude, pois, a mendicante, àquele que mendiga ou pede ajuda. Tal compreensão traz mudanças importantes à nossa percepção, em termos de analogia. Na tradução mais precisa, o que Jesus diz é “Bem aventurados os que mendigam em espírito”, ou “bem aventurados os que humildemente suplicam em espírito”. E essa ideia é logo adiante confirmada com “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados”, ou seja, a dimensão ética e espiritual sobrepondo-se à dimensão física, intestinal. E, mais uma vez, ali, a tradução de “fome” para o termo “peina” não é a mais perfeita, porque essa palavra tanto pode significar “ter fome”, como “ter necessidade de algo”.
O “mendigar”, então, simboliza estar necessitado de algo, o ansiar e pedir humildemente por esse bem do qual se necessita; representa a consciência de qual é a nossa verdadeira e primeira necessidade – nossa principal e mais importante, ou mesmo única necessidade real. Daí que o aceitar e se dedicar completamente à satisfação dessa necessidade, segundo Jesus, constitui o caminho da libertação. O Divino desce à necessidade humana, Ele próprio mostra a trilha, a jornada para a Liberdade através do reconhecimento de nossa incompletude e de nossa ancestral necessidade. É na humildade do reconhecimento dessa necessidade que o homem se encontra e se completa ou realiza, não fugindo dela. E, na medida em que se encontra, encontra Deus. Jesus mostra o caminho, reabre as vias; além das traduções, o Senhor permanece, como permaneceu sempre, bem compreendido por todo aquele que o busca não somente na dureza da letra, mas no interior de si, usando de total sinceridade e transparência de alma.
Por fim, as traduções que trazem “humildes de espírito” não são também literais, porém mais precisas que o “pobre de espírito”. O adjetivo “humilde”, usado isoladamente, poderia levar à ideia de alguém acanhado e tímido, uma pessoa que não ousa levar as suas ideias e convicções à luz da discussão e nem fazer refletir os seus princípios nas suas atitudes e em sua postura perante a sociedade. Por outro lado, quando ouvimos falar em “humilde de espírito”, fica claro que se está referindo a uma qualidade moral, não de comportamento social, embora uma coisa transpareça na outra. Os que têm o verdadeiro “espírito de pobre” evangélico certamente são humildes, reconhecem-se necessitados de ajuda para crescer. Mais do que isso, sabem que a ajuda de que necessitam é espiritual, pois é nesse aspecto que está a sua pobreza. Pedem a Deus por tal ajuda, ao mesmo tempo em que se esforçam para enriquecer os seus espíritos com as virtudes das quais se veem carentes. Por óbvio, quem tem um verdadeiro “espírito de pobre” é o humilde em espírito. Alguém materialmente pobre pode aparentar humildade no seu comportamento social, mas internamente ser revoltado contra a sua condição e/ou contra o seu próximo e, desse modo, não possuir humildade moral. Já os pobres em espírito são os que têm e cultivam um coração/espírito humilde. Verdadeira humildade, pois, é a palavra chave para entender a primeira das Bem-aventuranças.
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[1] Também chamadas virtudes humanas.
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