Nesta aula veremos de que modo fundir em um só os dois métodos para o progresso na vida interior – o método experimental e o método dedutivo –, estudados em nossa última aula, posto que o melhor a se fazer é combinar harmonicamente esses dois métodos, e assim importa saber como fazê-lo. Vejamos.
Antes de nos debruçarmos o problema em questão e apresentarmos as considerações de Mons. Tanquerey a respeito, importa lembrar o que exatamente estamos buscando aqui, a saber: progredir espiritualmente, alcançando uma perfeição cada vez maior na vida interior, na contemplação de Deus conforme nos for possível já nesta vida.
Ao homem mediano de nossos tempos, tal intenção e objetivo poderá parecer um tanto quanto abstrato, estranho até. Estamos tão acostumados a buscar a realização de nossas vidas nas posses, nos prazeres fúteis, ilusórios e efêmeros, no materialismo, nos “brinquedos” e sensações com as quais procuramos nos anestesiar das dores que nos são causadas (extrema loucura!) pelos nossos próprios desejos desordenados, que é para nós difícil entender a busca por ter comunhão com Deus na vida diária, no cotidiano, em cada pequeno passo que damos nesta vida. Mas, de fato, nossos desejos – e, logo, nossas ações –, deveriam estar todos fundamentalmente ordenados para a vida em Deus, que é o Sumo Bem e o Doador de todos os bens, o Autor da Vida e o único Caminho para a plenitude.
Sem esse profundo conhecimento de si mesmo, o qual os métodos aqui propostos procuram alcançar, o ser humano será infeliz mesmo em meio a todos os prazeres e confortos que este mundo é – ou será um dia – capaz de oferecer. Ao contrário, com tal experiência e consciência, a felicidade se mantém intocável, mesmo em meio às maiores provações e aparentes sofrimentos deste mundo. Porque felicidade e infelicidade são estados do nosso espírito; são coisas que os seres humanos são/estão, e não estão relacionadas a algo que possuam. Ninguém “tem” felicidade ou tristeza. Uma pessoa é feliz ou infeliz. Ser feliz não está absolutamente relacionado ao ter, mas sim ao ser. A perfeita harmonia do espírito, do “eu” humano, com a Realidade divina: eis a plena felicidade. Isto é moldar-se à Vontade de Deus, que – quer tenhamos consciência disto quer não –, é sempre o melhor para nós mesmos. O misticismo judaico foi capaz de intuir que cada ser humano é, em certo sentido, aquilo que deseja. O desejo é a força que move e define os seres humanos: por essa perspectiva, pode-se dizer que em um nível profundo somos feitos dos nossos desejos. Pare um pouco e pense sobre estas duas questões:
1) Qual o seu maior desejo?
2) De que maneiras você poderia definir o seu viver neste mundo?
Faça realmente uma pausa e reflita com honestidade sobre essas duas perguntas, antes de respondê-las, de si para si mesmo. Depois, analise suas conclusões e veja se as duas respostas estão intimamente relacionadas. Sim? Você vive de acordo com aquilo que deseja? O ter ou não o que deseja define o estado geral da sua vida?
Pois bem. Esse experimento simples demonstra que a verdadeira e perene felicidade só pode ser possível a partir do momento em que o ser humano alinha a sua vontade com a Vontade Perfeita da Consciência Suprema que é Deus, porque esta e somente esta é o nosso verdadeiro Bem; esta é que se concretizará infalivelmente e permanecerá para sempre. Se estivermos unidos a ela, estaremos bem, realizados e em paz. Este é o meio cristão de ser feliz. É o único meio. Ora, desejamos aquilo que amamos, e mais desejamos aquilo que mais amamos. Ninguém deseja o que odeia ou despreza. Pois bem, provado está que obedecer ao Primeiro Mandamento garante a verdadeira felicidade/realização para os seres humanos, e não nos referimos aqui à eternidade no Céu, mas a esta vida, aqui e agora mesmo. Outros tipos inferiores de felicidade podem existir, sim, mas não representam a felicidade plena e integral, pois são naturalmente efêmeros, temporários, incertos; são sempre ilusórios. Quem deposita a sua felicidade em posses ou criaturas não poderá nunca se considerar realmente feliz, nem nunca provará do sabor da felicidade verdadeira, mas será sempre alguém que apenas vive alguns momentos de alegria.
Por felicidade não entendemos alguma sensação passageira, mas um estado de realização perfeita e duradoura, que se reflete concretamente na vida do indivíduo. Concluímos, a partir daí – porque a verdadeira felicidade reside verdadeiramente em Deus – que o segredo da felicidade é, então, o Amor, se é que cremos e sabemos que Deus é Amor. Foi isso o que afirmaram todos os Santos, e esta é uma maneira de resumir e simplificar a resposta. Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face (nossa ‘Santa Terezinha’) parece ter chegado a estas conclusões, quando disse:
Ó Farol Luminoso do Amor, eu sei como chegar a Ti; encontrei o segredo de me apropriar da Tua Chama! (...) Compreendi que o Amor engloba todas as vocações, que o Amor é tudo! (...) Como estou longe de ser conduzida pela via do temor, sei sempre encontrar o meio de ser feliz e aproveitar de minhas misérias... (História de uma Alma, n.s 255 e 256)
A vida interior magistralmente resumida por uma doce menina santa. Se aceitamos que a condição mínima de Jesus Cristo para quem deseja segui-lo é renunciar a si mesmo e incondicionalmente dedicar-se a segui-lo, e se compreendemos e assumimos que Deus é Amor, de fato entendemos que o caminho para a felicidade é também o caminho do Amor, o único que leva a Deus.
O ser humano nasceu para ser feliz, mas é claríssimo para qualquer um que tenha olhos para ver que o mundo não entenda nada de felicidade. O mundo confunde felicidade com riqueza, pompas e poder sobre o próximo. Ora começamos falando sobre a metodologia para o aperfeiçoamento interior/espiritual, e terminamos falando em felicidade, realização e amor? Sim, porque tais coisas são a finalidade de tudo o que aqui estudamos e tentamos desvendar, mas desde já sabemos o principal: Deus é a Fonte da felicidade, da realização e do amor, e amá-lo verdadeiramente é a resposta para tudo. Para amá-lo, porém, é preciso conhecê-lo, e para conhecê-lo é preciso contemplá-lo: aqui está o desafio da Ascética e da Mística.
Agora já podemos falar da união dos dois métodos propostos no início. 1) Primeiro passo: é necessário estudar e conhecer sempre melhor e mais perfeitamente a Doutrina revelada, tal qual nos é oferecida pelas Sagradas Escrituras e pela santa Tradição, compreendendo nela o Magistério ordinário da Igreja. Com o auxílio da Doutrina, então, podemos determinar, pelo método dedutivo, o que é a vida cristã e a sua perfeição, sabendo quais são os seus diferentes graus, e a marcha progressiva que se deve geralmente seguir para chegar à contemplação. Saberemos então em que consiste esta contemplação, quer nos seus elementos essenciais, quer nos fenômenos extraordinários que por vezes a acompanham.
A este estudo doutrinal é preciso a juntar o método de observação: a) examinar com cuidado as almas, suas qualidades e defeitos, suas características próprias, suas inclinações e repugnâncias, os movimentos da natureza e da Graça que nelas se produzem; tais conhecimentos psicológicos permitirão determinar quais os meios de perfeição que lhes convêm; as virtudes de que têm maior necessidade e para as quais a Graça as inclina, sua correspondência a essa mesma Graça; os obstáculos que encontram e os meios que lhes dão melhor resultado para triunfar.
b) Para fazer tal observação, pode-se ler as vidas dos Santos, sobretudo as que, sem dissimular os seus defeitos humanos, mostram a maneira progressiva como eles os combateram, como e por quais meios praticaram as virtudes; se passaram, e como o fizeram, da via ascética à via mística, sob quais influências. c) Também na vida dos contemplativos se devem estudar os fenômenos diversos da contemplação, desde os primeiros e indecisos lampejos de luz até os mais elevados picos, os efeitos de santidade produzidos por estas graças, as provações a que foram submetidos, as virtudes que praticaram. Tudo isso virá completar e por vezes retificar os conhecimentos teóricos adquiridos pelo estudante.
c) Com o auxílio dos princípios teológicos e dos fenómenos místicos bem estudados e classificados, poder-se-á subir mais facilmente à natureza da contemplação, às suas causas, suas espécies, distinguir o que há nela de normal e de extraordinário. Haverá que se buscar entender em que medida os dons do Espírito Santo são os princípios formais da contemplação, e como se devem cultivá-los, para a alma se por nas disposições interiores favoráveis à contemplação. Haverá que se examinar, então, se os fenómenos devidamente verificados se explicam todos por dons do Espírito Santo, se alguns não supõem espécies infusas, e como estas operam na alma; ou, então, se é o amor que produz esses estados de alma, sem conhecimentos novos. Então é que se poderá ver melhor em que consiste o estado passivo, e em que proporção a alma nele permanece ativa, a parte de Deus e da alma na contemplação infusa; o que é ordinário neste estado, o que se torna extraordinário e preternatural. Assim se poderá estudar melhor o problema da vocação ao estado místico.
Procedendo assim, teremos mais probabilidade de chegar à verdade, às conclusões práticas para a direção das almas; um estudo deste gênero será não menos atraente que santificante.
Com que espírito se deve seguir este método unificado?
É necessário estudar estes árduos problemas com serenidade e ponderação, sempre com o único fim de conhecer a verdade, não por qualquer desejo superficial ou vaidoso, baseado em nossas preferências particulares, porque a nossa compreensão das coisas, fora de Deus, está sempre sujeita ao engano.
Por conseguinte, importa descobrir e por em evidência tudo o que é certo ou comumente admitido, e deixar para um segundo plano aquilo que é matéria de debate. A direção, que se há de seguir não depende das questões controversas, senão das doutrinas comumente recebidas, aceitas e autenticadas pela santa Igreja. Há unanimidade em todas as escolas, por exemplo, em reconhecer que a abnegação e a caridade, o sacrifício e o amor são necessários a todas as almas em todas as vias; que a combinação harmônica deste duplo elemento depende muito do caráter das pessoas que se empenham na busca. Todas admitem igualmente que não se deve jamais cessar de praticar o espírito de penitência, ainda que tome diferentes formas segundo os diferentes graus de perfeição; que é preciso exercitar as virtudes morais e teologais de maneira cada vez mais perfeita, para chegar à via unitiva, e que os dons do Espírito Santo, cultivados com diligência, dão à nossa alma uma maleabilidade que a torna mais dócil às inspirações da Graça e a preparam, se Deus a chamar, para a contemplação. Há igualmente acordo sobre o fato de que a contemplação infusa é essencialmente gratuita, que Deus a dá a quem Ele quer e quando quer; que, por conseguinte, ninguém se pode colocar a si mesmo nesse estado passivo de contemplação, e que os sinais de vocação próxima a esse estado são os que tão bem descreve São João da Cruz. E, uma vez chegadas à contemplação, devem as almas progredir na conformidade perfeita com a Vontade de Deus, na confiança ilimitada e sobretudo na humildade, virtude que recomenda constantemente Santa Teresa de Ávila.
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