Módulo 8: Bíblia 1 | História e formação do Cânon Bíblico


A partir deste módulo, veremos em detalhes a história e também a metodologia adotada pela Igreja para o desenvolvimento e consolidação do Cânon Bíblico. Esta parte da disciplina Sagradas Escrituras é fundamental para o nosso Curso, mas talvez pareça enfadonha para alguns alunos menos interessados nos aspectos mais técnicos daquilo que se relaciona com o estudo dos Livros Sagrados. Todavia, tais conhecimentos são realmente necessários a todos aqueles que procuram uma formação minimamente completa. Saber tais coisas fará toda a diferença ao estudante da Teologia, especialmente naqueles momentos em que se vir confrontado com algum inimigo da Religião – seja externo ou interno –, do tipo que desafia, imaginando que conhece muito a Bíblia, ou do tipo que quer deturpar as coisas para fazer afirmar a “sua própria ‘verdade’”. Coragem, pois! Não é sem esforço que nos tornaremos capazes de dar a razão de nossa esperança àqueles que no-la pedirem[1].


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    Começando pelo começo, vimos em nosso estudo anterior que a palavra "cânon" deriva do grego – kanoni (κανών) –, e que significa, literalmente, “cana” ou “caniço”, porque na Antiguidade a cana era usada, em forma de vara, como instrumento de medição, como régua, sendo este mesmo um outro significado para a palavra. “Cânone”,  e que especificamente no que concerne à Religião, refere-se às medidas (figuradamente, às réguas) que devem ser usadas para proceder à “medição” que permita saber o que é legítimo, verdadeiro, correto ou ortodoxo, ou ainda saber aquilo que esteja ou não conforme a verdadeira Sã Doutrina. Assim, o Cânon Bíblico (ou lista canônica, ou lista dos livros canônicos) é a lista dos Livros escolhidos como sagrados; ou, melhor dizendo, reconhecidos como tal, e autorizados pela Igreja de Cristo para compor a Bíblia dos cristãos[2].


    Vimos também a diferença entre canonicidade e Inspiração da Bíblia Sagrada[3]. E vimos ainda, desde o Apêndice introdutório a esta Formação, que a palavra “Bíblia” (do grego biblos / Βίβλος ou biblia / βιβλία), que é plural de biblion (βιβλίον) significa “biblioteca”. Rememorando:


...o Livro sagrado dos cristãos não é um só livro, mas sim um volume composto de uma coleção ou conjunto de livros. Por ser a Bíblia uma coleção de (73) livros reunidos em um, é apenas mais correto dizer ‘Sagradas Escrituras’, usando o plural, e manter esse hábito indiretamente já ajuda a enfraquecer a heresia protestante do Sola Scriptura, a qual faz subentender a ideia da Bíblia como um livro completo e fechado em si, dado por Deus já acabado, como regra absoluta de fé e prática dos cristãos e como a única/exclusiva solução para todas as questões teológicas da humanidade em todos os tempos. Por essa razão é que pastores e teólogos protestantes apreciam especialmente o termo ‘Palavra de Deus’ para se referir ao Livro sagrado; algo que (...) não está correto em sentido absoluto [já que biblos significa plural/coletivo/biblioteca].[4]


    Um dos mais populares pregadores cristãos dos nossos dias é o “Padre Paulo Ricardo”[5]. Não seria exagero deduzir que não haja nenhum brasileiro minimamente culto, que se interesse por Teologia e/ou Doutrina católica, ou ainda alguém que apenas aprecie assistir vídeos de pregações, hoje, que não o conheça. Esse Padre atua fortemente por meio de sua página pessoal, nas redes sociais e em seu canal do Youtube há mais de uma década; mas foi justamente depois que um vídeo de uma apresentação sua, em um programa de TV, como se diz, “viralizou” na internet, que ele passou a se tornar realmente conhecido. Nesse vídeo, respondendo com propriedade às provocações de um telespectador protestante, ele disse uma frase emblemática: “A Bíblia não caiu [pronta] do Céu, com zíper e tudo (...) para o senhor carregá-la debaixo do braço!..”[6].


    De fato, ainda que essa verdade tão elementar ainda espante alguns ingênuos, a Bíblia não nos chegou pronta, longe disso: a redação dos Livros sagrados demorou cerca de dezesseis séculos para ser concluída (iniciando-se em torno do séc. XV a.C. e concluindo-se no final do séc. I d.C). Para que se pudesse reunir em um só volume os Livros verdadeiramente sagrados e normativos dos cristãos –, isto é, os textos reconhecidos pela Igreja[7] como divinamente inspirados –, era necessário, por óbvio, saber com total certeza quais Livros eram esses. E as Sagradas Escrituras, elas próprias, em nenhuma de suas linhas define ou apresenta sua própria lista de livros.


    Há uma teoria heterodoxa e polêmica que considera que haveria um cânon bíblico judeu muito antigo, o qual teria sido fixado já logo depois do tempo do profeta Esdras. Tal hipótese é bastante improvável, para dizer o mínimo, principalmente porque sabemos que de fato ainda não havia, mesmo nos primeiros séculos da era cristã, consenso sobre quais livros da tradição judaica (nosso Antigo Testamento) deveriam ser incluídos nos seus textos sagrados-inspirados-canônicos, como veremos mais adiante.


    Essa mesma dúvida pairou sobre alguns livros da literatura cristã (o Novo Testamento) por um longo, longo tempo. Desse modo, nos primeiros séculos da nossa era, circulavam muitos livros que eram usados para catequese e doutrina entre as primeiríssimas comunidades da Igreja[8], sendo que a muitos era atribuída a autoria de algum dos Apóstolos. Alguns desses livros eram aceitos por toda a Igreja, enquanto que outros tinham a sua inspiração posta em dúvida ou debatida. Daí que alguns dos livros que hoje se encontram em nossas Bíblias só vieram a ser considerados sagrados-inspirados e incluídos ao Cânon mais tarde que outros.


    É a partir dessa realidade que temos, na disciplina Sagradas Escrituras, a divisão dos Livros que compõem a Bíblia segundo a classificação entre textos protocanônicos e deuterocanônicos: essa divisão é feita justamente de acordo com o processo histórico de reconhecimento da sua canonicidade.



Os Livros protocanônicos


A palavra "protocanônico" vem também do grego, da junção dos vocábulos proto (πρώτο), que significa primeiro, com o kanoni que vimos no início e que, aqui, vai assumir o sentido de primeiramente reconhecido e autorizado. Os livros protocanônicos são, pois, aqueles cuja canonicidade nunca foi debatida, isto é, os que foram primeiro e desde sempre considerados inspirados por Deus; logo, são necessariamente também autorizados por sua Igreja.


    Veremos melhor e com detalhes, mais adiante, sobre a relação destes Livros e o seu histórico.



Os Livros deuterocanônicos


"Deuterocanônico" vem do grego – da raiz deutero (δευτερο), que significa o que vem depois; em segundo lugar. Trata-se de um adjetivo que se refere aos textos que foram considerados canônicos a partir de um segundo momento histórico, pelo fato de ter havido inicialmente um debate na Igreja quanto à sua inspiração e, logo, quanto à sua canonicidade.


    Os chamados deuterocanônicos compõem um conjunto de sete Livros da Bíblia mais trechos de alguns outros – textos estes que estão presentes na Septuaginta, a antiga tradução em grego do Antigo Testamento utilizada pelos Apóstolos e que estudaremos em detalhes neste Curso.


    A origem da diferença entre os Livros proto e deutero, sua identificação e seu histórico, bem como as causas e os efeitos deste longo processo de canonização dos Textos Sagrados, é o que veremos a seguir.


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Aprofundemos o estudo nos temas apresentados e em alguns outros, diretamente relacionados, pois a sua compreensão se configura muito importante para o estudante da Teologia, na medida em que trará as respostas para certas perguntas que, de tempos em tempos, voltam sempre a ser feitas em ambientes cristãos.


    Tais respostas precisam ser dadas com correção e pacientemente, tantas vezes quanto se fizer necessário, por todo aquele que busca a verdadeira sabedoria que pode ser apreendida do estudo das Sagradas Páginas – sabedoria que é caridosa e humilde, sempre interessada no bem do próximo, se é que o estudante busca e trabalha para o cumprimento do Primeiro Mandamento, semelhante ao Segundo. Pois:

    "...a sabedoria que vem do Alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, indulgente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos; isenta de parcialidade e de hipocrisia" (Tg 3, 17).

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[1] Conf. aconselha o primeiro Papa a todos os cristãos em 1Pd 3,15.

[2] Vide pp. 19s. do Fasc. n. 7 desta Formação.

[3] Ibidem, p. 20.

[4] 1. SEBASTIÃO, Henrique. Apêndice introdutório ao Curso Livre em Teologia pela Fraternidade Laical São Próspero, 2019, pp. 11-12.

[5] Paulo Ricardo de Azevedo Júnior (7/11/1967 – ...), sacerdote, professor universitário e autor brasileiro, especialmente reconhecido por seu website e suas videoconferências catequéticas.

[6] O vídeo antológico, com quase um milhão de visualizações, encontra-se disponível em:
youtube.com/watch?time_continue=99&v=nRMT460JGfU&feature=emb_title
Acesso em 8/12/2022.

[7] Igreja que é o Corpo de Cristo e que a própria Escritura reconhece e define como ‘a Coluna e o Fundamento da Verdade’ (1Tm 3,15). Portanto, a única com autoridade para empreender tal trabalho, sob a Assistência do Espírito Santo.

[8] Chamadas ‘igrejas’ na Bíblia, com o sentido de assembleias dos cristãos, as ancestrais das atuais dioceses.

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