Trataremos agora da utilidade da Teologia Ascética para os leigos. Tanquerey em seu compêndio fala de utilidade e não de necessidade, e explica que essa diferença se dá pelo fato de que os leigos podem se deixar guiar por “um diretor instruído e experimentado”[1], e por conseguinte não estão obrigados a estudar a Ascética. Mas acresce que tal estudo será sempre utilíssimo. Evidente que, quase um século depois, e especialmente pelo fato de sua obra ter sido escrita bem antes do Concílio Vaticano II, faz-se necessário considerar que, hoje, a situação do laicato é real e radicalmente diferente.
Fato é que os bons sacerdotes – e competentes diretores espirituais – já não se encontram mais tão fácil nem estão à nossa disposição numa paróquia próxima, como ocorria antes. Há muita confusão doutrinal, litúrgica, moral e disciplinar na Igreja, em uma situação de grande crise ou da grande apostasia que nos assola, pelo fim da qual devemos rezar todos os dias. De tal modo que, nos nossos tempos, talvez muito possivelmente é correto dizer que os leigos realmente necessitem estudar a Ascética e a Mística, por diversas razões, entre as quais:
• Cultivar interiormente o desejo pela perfeição, pela aquisição de conhecimentos reais sobre a verdadeira natureza da vida cristã e dos meios que nos permitem aperfeiçoá-la. Não se pode desejar aquilo que se não conhece; mas a a leitura dos livros espirituais aumenta o desejo sincero de pôr em prática o que se conhece. Quantas almas não haverão se lançado com ardor no caminho da perfeição por meio da leitura da Imitação de Cristo, do Combate Espiritual, da Introdução à Vida Devota (Filoteia) de São Francisco de Sales, da Prática do Amor de Jesus Cristo de Santo Afonso Maria de Ligório e tantos outros?
• O estudo da Teologia Ascética facilita e completa a vida espiritual e nas suas práticas, na oração, penitência, frequência aos Sacramentos. Aquele que conhece a verdadeira Ascética e a pratica sabe melhor como fazer a Confissão ou como comungar; compreendem de modo ampliado e aperfeiçoado aquilo que encontram em livro outros livros de piedade;
• Os estudos direcionados à vida espiritual poderão suprir, em certa medida, a direção que não se pode receber, por falta de guia espiritual, ou pela sua raridade em nossos tempos. Como diremos mais tarde; quando não se pode encontrar um bom diretor, Deus, em sua Bondade, supre-nos essa falta, e um dos meios de que se serve é precisamente das boas leituras que abordam a metodologia e a desenham as setas a apontar para a via que se deve seguir para se alcançar a perfeição.
Como estudar uma ciência tão sublime
Há muitos métodos ou sistemas para que se progrida nos estudos da Ascética e da Mística. Aconselha-se, geral e basicamente, 1) o uso frequente de um diário; 2) a leitura contínua dos grandes mestres, 3) a prática constante.
* Manter um diário
As leituras espirituais visam, antes de tudo, um exercício de piedade. Cada um deles contém, via de regra, uma série de preciosas instruções, conselhos e exortações para a vida interior, ainda que seja raro que ordenem de maneira metódica e completa essas questões da espiritualidade. Por isso, é de grande utilidade que se tenha um diário, no qual se anote tudo quanto se vai aprendendo ao longo desse santo caminho, e que sirva para coordenar/organizar logicamente os aprendizados e talvez conselhos recebidos, aquilo que realmente se apreendeu, o que fez sentido, o que realmente fez diferença na vida do estudante. Esse diário deve, de tempos em tempos, ser relido e ampliado, porque sem o uso deste auxílio, depressa se esquece o cristão de boa parte do que aprendeu, e termina desanimando ao perceber que sempre tropeça e comete novamente os mesmos velhos erros do passado. Vendo e relendo seus próprios conselhos anotados, apreendidos dos grandes diretores, saberá evitar muitos percalços e tomar decisões diferentes em momentos importantes, o que se refletirá num crescimento espiritual concreto e contínuo.
b) Este estudo deverá continuar a se aperfeiçoar sempre, por toda a vida: o trabalho de santificação da alma nunca termina; assim como um bom médico não cessa de aperfeiçoar os seus estudos pela prática da sua arte, devemos também desejar aperfeiçoar sempre a nossa própria arte de crescer interiormente, aproximando-nos mais e mais de Cristo e do sem exemplo de perfeição.
Não se pode jamais descuidar da prática das virtudes cristãs, como se faz hoje, tratando-se a fé como coisa que não interfere nos modos de conduta da pessoa. Quanto mais progredido nos estudos, tanto mais virtuoso nas decisões e ações de sua vida prática é o verdadeiro estudante da Ascética cristã. Não se pode compreender os diferentes estágios da perfeição do que percorrendo-os por si mesmo. Assim é que se pode ajudar também o próximo: o melhor guia através das montanhas ou da selva não é porventura aquele que já as percorreu em todos os sentidos?
Combinadas essas condições, o estudo da Teologia Ascética e Mística será sumamente proveitoso para quem o pratica e para os que convivem com ele.
Dificuldades importantes
Os exageros dos escrupulosos – o vício de falsear a realidade que é típico das consciências escrupulosas, levando o cristão a uma exigência interior muito mais alta do que a verdadeira Moral cristã exige, fazendo-o buscar para si uma perfeição irrealizável que o faz sofrer até desânimo, é um perigo real e sempre presente.
A verdadeira Ascética, porém, não busca um sofrimento sem sentido, pela autopunição injusta que só leva à decepção e, no fim, ao desânimo e ao abandono da busca da perfeição e, em última análise, à perda da própria Fé; por isso, distingue entre o preceito e o conselho, entre as almas chamadas à mais alta perfeição e as que o não são, e é preciso saber aceitar e reconhecer tais realidades.
Apesar das instâncias com as almas de eleição, para as elevar às alturas inacessíveis aos cristãos ordinários, a Ascética não esquece a diferença entre os Mandamentos e os conselhos, as condições essenciais à salvação e aquelas requeridas pela perfeição; todavia, mesmo essa busca pela perfeição deve observar com muito cuidado uma série de condições particulares da alma que a empreende.
A escrupulosidade também traz às almas o risco de se deixar de lado necessários e justos cuidados com as questões temporais e as obrigações do estado, para se dedicar radical e exclusivamente à vida espiritual, o que é um erro. Não somos anjos e não alcançamos ainda a vida eterna no Céu. Enquanto estivermos no mundo, continuará sendo necessário o cuidado com nossos corpos e nossa subsistência. Todavia, que a salvação de nossa alma deve ser a primeira das nossas preocupações, é o que expressamente ensina Nosso Senhor: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16,26). Disto, porém, deduz-se o necessário bom senso e o frutuoso equilíbrio entre todas as coisas. A Ascética encaminha as almas para a contemplação, mas não procura, com isso, mesmo afastá-las da vida ativa. Ora seria necessário ignorar a História para se crer que a contemplação prejudica a ação: Os verdadeiros místicos são homens de senso prático e de ação, não de raciocínio e teoria. Não passou Nosso Senhor quarenta dias e quarenta noites jejuando e meditando, retirado do mundo, no deserto? Ainda assim, também não participava Ele, quando fosse oportuno, de festas? Não comia e bebia? Não aceitava convites para jantares em casa de boas pessoas?
No verdadeiro asceta não há sombra de materialismo, apego ao dinheiro ou às posses, e nem de egoísmo, porquanto uma das condições essenciais à salvação é a caridade para com o próximo, que se manifesta por obras tanto corporais como espirituais. A perfeição exige que amemos o próximo a ponto de nos sacrificarmos por ele, como Jesus o fez por nós. E também é virtuoso o espírito da organização, o dom do comando, e revelam-se muito úteis naqueles dotados para os bons negócios. As obras, que fundam oferecem oportunidades e melhoria de vida para muitos; São capazes de conceber e dirigir as suas empresas, dosando com sabedoria a prudência e o arrojo, e dessa justa apreciação das possibilidades que o Bom Deus lhes concede, praticam boas obras. Mas de nada se escravizam, nada antepõem a Deus, nada os impede de buscar antes de tudo o Reino de Deus. Sim, são raras tais pessoas, mas nem tanto. Boa parte dos grandes mestres da vida espiritual eram também, ao mesmo tempo, bons homens de ciência e empreendedores de grandes realizações; assim como Clemente de Alexandria, São Basílio, São João Crísóstomo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório, Santo Anselmo, São Bernardo, Santo Alberto Magno, São Francisco de Sales, São Vicente de Paulo, São João Bosco, São Luís Orione e muitíssimos outros. A contemplação, longe de ser um obstáculo à ação e às realizações temporais, pode servir para esclarecê-la e e dirigi-la.
Nada, pois, mais nobre, mais importante e também mais útil que a Teologia Ascética bem compreendida.
[1] TANQUEREY (1961), p. 20.
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