Saber o que define os Livros proto e os deuterocanônicos – e mais além, entender porque ocorre tal diferença e separação – é saber não só qual diferença há entre a Bíblia católica e a versão dos protestantes, mas também adquirir o cabedal intelectual para reconhecer onde é que se localiza a solução do problema; pois é exatamente aí que reside.
Tudo o que difere (em termos de conteúdo, evidentemente, e não de interpretação) o conjunto dos Livros considerados sagrados-inspirados pelos católicos daqueles assim considerados pelos protestantes, está concentrado no Antigo Testamento (AT). O Novo Testamento (NT), que é o que constitui o eixo, o cumprimento, a consumação e o resumo de toda o edifício da Fé cristã – é igual nas duas versões, tanto para católicos quanto para protestantes, contendo os mesmos 27 livros, que vão do Santo Evangelho segundo São Mateus até o Apocalipse de São João. – A diferença, pois, encontra-se justamente no cânon dos livros do AT.
A diferença, pois, está na lista dos Livros que compõem o AT: para os católicos, são 46 livros; na Bíblia protestante, são 39, sendo que lhes faltam os Livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, Carta de Jeremias e os Livros dos Macabeus, além de partes de Daniel e Ester. São estes os 7 Livros e mais estes os fragmentos chamados deuterocanônicos. Tal diferença resulta de uma longa história, mas ao fim e ao cabo o que a resume não é alguma coisa complicada. E já que se trata de um tema tão importante, que precisamos entender direito, vejamos primeiro brevemente, a partir de um grande resumo, como tudo aconteceu, quando e por quê.
Origem da diferença
O povo católico, ao longo do tempo, sempre observou a orientação do Magistério da Igreja, isto é, a condução dos santos Apóstolos escolhidos diretamente por Jesus Cristo, e, depois deles, os seus legítimos sucessores, que dão testemunho de que o Evangelho transmitido e a Fé confessada são os mesmos ensinados pelo Cristo, Senhor do Céu e da Terra. Somente a partir do século XVI é que veio a surgir o grupo denominado protestante, o qual renegou a autoridade do sacro Magistério da Igreja. Esse grupo acreditava, entre outras coisas, que a Igreja Católica havia se corrompido e que deveriam eles retomar aquilo que supunham constituir os costumes da “igreja primitiva”. Evidentemente, só poderiam fazer isso conforme alguns deles imaginavam que seria o conjunto desses usos e práticas.
[Lembre-se o estudante de que já existia a Igreja Católica há mais de um e meio milênio quando surgiu a primeira comunidade dita protestante. Foi chamada ‘protestante’, inicialmente, devido ao protesto de seis príncipes luteranos e 14 cidades alemãs (ocorrido aos 19 de abril de 1529), quando a chamada ‘Segunda Dieta(1)de Speyer’, convocada pelo imperador Carlos V, revogou uma autorização concedida três anos antes para que cada príncipe determinasse a religião do seu território. O termo ‘protestante’ foi logo adotado, inclusive pelos partidários de Lutero, e rapidamente transcendeu as esferas local e epocal e passou definir genericamente o grupo que rejeitava a autoridade do Sucessor de Pedro, justamente porque protestavam contra a autoridade e a doutrina da primeira Igreja de Cristo.]
Com Lutero, o pai do protestantismo, e mais ainda depois dele, sobreveio um período de intensas disputas, de uma rivalidade que crescia mais e mais, e então tudo servia como pretexto para aprofundar o abismo da separação entre os que confessavam o Nome de Jesus Cristo. No meio desse processo, os protestantes acabaram por descobrir que os judeus tinham uma lista diferente de livros sagrados e, dentro desse panorama de animosidade e de incessante busca por pretextos, era apenas uma questão de tempo até que deduzissem que a “terrível” Igreja Católica, como de costume a grande culpada de todos os males do mundo, tinha “acrescentado” livros à Bíblia... Muitos pensam que foi Lutero quem retirou livros da Bíblia cristã, mas este é um engano bem primário. Na realidade, essa mudança foi também um processo lento, sendo que foi somente no século XIX (sim...) que os protestantes decidiram abolir de vez os deuterocanônicos da sua lista.
Os Apóstolos, obviamente, não tinham a Bíblia tal como a conhecemos hoje, até porque estavam eles mesmos escrevendo a parte conclusiva da Bíblia cristã, insista-se de passagem, a parte que a fundamenta e dá sentido: o Novo Testamento. A Bíblia que liam, pois, era o conjunto de Livros do AT, e sempre que citaram as Escrituras em seus próprios Livros, referiam-se sempre a esses escritos da Bíblia Judaica, chamada Mikrá ou, mais popularmente, Tanakh. Esta é constituída dos Livros da Lei (Torá ou Chumash, os cinco primeiro Livros da Bíblia cristã/Pentateuco), os Livros dos Profetas (Neviim) e os Livros chamados Escritos (Ketuvim).
É digno de nota, conforme já foi citado, que o processo de canonização desses Livros pelos judeus também foi muito lento. Primeiro foram canonizados os Livros da Lei, depois os dos Profetas e, somente muito tempo depois, os dos Escritos. Para que se tenha uma ideia, mesmo no tempo de Cristo, a lista “oficial” – o cânon – da Bíblia Judaica ainda não estava fechado: os judeus contemporâneos de Jesus ainda debatiam sobre quais seriam os verdadeiros livros sagrados(!). Os saduceus, por exemplo, só aceitavam os Livros da Torá; os fariseus aceitavam também os Profetas e os Escritos, mas não totalmente, entendendo que a inspiração dos Escritos ainda não estava concluída.
Ora Nosso Senhor deu a ordem que todo cristão conhece bem: os Apóstolos deveriam partir pelo mundo a evangelizar todos os povos. Ocorre que a língua mais falada no mundo daquela época era o grego. Logo, os Apóstolos começaram a pregar o Evangelho em grego, utilizando-se da tradução grega das Escrituras denominada Septuaginta[2] ou Tradução dos Setenta (LXX), que havia sido elaborada em Alexandria bem antes do tempo de Cristo (no séc. III aC).
A Septuaginta contém os sete livros que permanecem até hoje na Bíblia Sagrada católica, e todo biblista competente (inclusive muitos reconhecidos doutores protestantes) é capaz de perceber que, em diversas citações que o NT faz do AT, a tradução utilizada é indubitavelmente a da Septuaginta. Esse era, portanto, o conjunto dos Livros sagrados utilizado pelos Apóstolos, na Igreja que empreendia seus primeiríssimos passos. Tal realidade será vista em detalhes em momento oportuno.
A Igreja Católica, como única Igreja que procede diretamente de Jesus Cristo e dos seus Apóstolos, evidentemente (não haveria como ser diferente) adotou essa mesma versão da Bíblia. Ocorre que nos primeiros tempos da Igreja, quando os judeus perceberam que os Apóstolos pregavam o Evangelho, expulsaram-nos das suas sinagogas. E esse fato realmente contribuiu também para que os judeus fechassem de uma vez o cânon dos seus livros sagrados, rejeitando tudo o que era cristão. Assim, no final do século I, decidiram pela exclusão definitiva daqueles sete livros que constavam da Septuaginta usada pelos cristãos.
Resumindo a história, vemos que o AT da Bíblia católica, com a lista completa – a da Septuaginta – foi adotado e de certo modo confirmado pelos Apóstolos de Cristo e seus sucessores, desde o início da Igreja, enquanto que o AT da Bíblia protestante foi definido por rabinos judeus, cerca de um século depois de Cristo.
Antes e além de qualquer debate, a mais simples realidade dos fatos é esta: os protestantes, ao aceitarem o cânon da Bíblia judaica, estão aceitando a autoridade dos judeus depois de Cristo, e negando a autoridade dos Apóstolos, a quem o próprio Cristo deu toda a autoridade sobre a Igreja. O que não é de surpreender, na medida em que os protestantes igualmente renegam os Sacramentos e a autoridade de Pedro, outros dons dados diretamente por Nosso Senhor, bem como a Sucessão Apostólica, etc.
Lembramos, por fim, que os 27 livros do NT que os protestantes adotam e aceitam normalmente como divinamente inspirados, foram definidos e canonizados pela mesma Igreja Católica que também definiu e canonizou os livros do AT. Incoerentemente aceitam a autoridade da Igreja para definir os livros do NT, mas não a aceitam quanto à definição dos 46 livros do AT.
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[1] Dieta: Assembleia geral da Nação, na qual as autoridades dos diversos Estados alemães se juntavam para deliberar sobre os problemas nacionais e universais da Igreja, como por exemplo o avanço muçulmano e a possibilidade de uma nova cruzada.
[2] Teremos um estudo específico nesta formação.
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