Estudamos como, apesar do aparentemente terrível e totalmente frustrante desfecho do ministério de seu Mestre, os primeiros “seguidores do Caminho” permaneceram firmes na Fé em suas promessas e na vida eterna que viria, porque estavam na posse de provas contundentes da veracidade de tudo a quanto tinham aderido. Daniel-Rops elenca três garantias sobrenaturais com a qual contavam esses primeiros membros da Igreja, sublinhados em todos os Livros escritos pela primeira geração cristã: os Evangelhos, os Atos e as Epístolas, os quais sublinham igualmente a sua importância.
A primeira fora dada pelo próprio Jesus, na véspera de sua morte, na noite da Quinta-feira Santa. Partilhando com seus discípulos-Apóstolos a sua última Ceia Pascal, partira o pão, tomara de um cálice de vinho e dera graças, dizendo: ”Este é o meu Corpo, entregue por vós (...). “Este cálice é o Novo Testamento em meu Sangue, que é derramado por vós “ (cf. Lc 22,19-20). O gesto resumiu em uma fórmula sacramental o ensinamento sobre o qual já insistira muitas vezes: por pelo menos quatro vezes, Ele advertira quanto ao drama que haveria de consumar a sua missão sobre a Terra, frisando a necessidade inevitável da sua Morte com o seu sentido sacrificial.
Em Cafarnaum, em seu discurso tremendo sobre o Pão da Vida, tinha precisado antecipadamente esta mesma doutrina: “EU SOU o Pão vivo descido do Céu; se alguém comer deste Pão, viverá eternamente. E o Pão que eu hei de dar é a minha carne, para a salvação do mundo“ (Jo 6,51).
Todavia, o Senhor não fora compreendido naquela ocasião. Cegados pela imagem, tão difundida no meio daquele povo, de um messias glorioso e predestinado à vitória militar e política, os discípulos e até o mesmo São Pedro – este com muita veemência –, haviam-se recusado a acreditar na necessidade desse sacrifício[1]. Mas, depois de ocorridos os fatos, depois de transposto o primeiro momento da estupefação, perturbação e (até compreensível) desânimo, a Morte do Mestre assumia, enfim, nos corações e mentes dos conversos, sua importância decisiva para a Fé. Mas por quê?
Em primeiro lugar, essa Morte provava de modo irrecusável os dons proféticos de Jesus. Além disso , estabelecia entre Ele e seus discípulos um laço que nada poderia quebrar: o laço da participação na sua Vida divina, conforme sua própria Promessa. Por fim, como Ele também predissera, tornara-se o sinal de uma “Nova Aliança” entre Deus e o povo eleito, uma nação agora espiritual, não mais um grupo ligado pela origem étnica, racial ou histórica.
Para os judeus crentes, familiarizados com os antigos textos sagrados, era manifesto que o mistério da Aliança, desde o sacrifício de Abraão até o anualmente celebrado, do Cordeiro Pascal, sempre estivera ligado à necessidade mesma do sacrifício; os discípulos puderam compreender, assim, o verdadeiro alcance da Imolação definitiva, feita no monte chamado em hebraico Gulgathan (aramaico Gúlguta), no grego Gólgota e no latim Calvarium[2].
Da mesma forma como Israel, no decorrer de sua história, aprendera a buscar sua força na convicção inquebrantável da Antiga Aliança com Deus, assim os fiéis de Jesus iriam enfrentar a História apoiados na certeza de que a Morte do verdadeiro Messias era, para eles, o penhor de uma Nova Aliança.
Por outro lado e ainda mais importante, o caráter sobrenatural do destino de Cristo tinha sido confirmado, com todo o esplendor, pelo mais admirável dentre os milagres: a Ressurreição. Quando, na manhã daquele Domingo de Páscoa, chegaram ao túmulo as santas mulheres, encontraram-no vazio, e haviam então corrido a levar a notícia aos discípulos, ainda prostrados pela dor e sofrimento, o que faria jorrar sobre eles uma torrente de luz e esperança. Um efeito que não foi imediato: é que o fato parecia inacreditável demais, mesmo para eles; houve hesitação em aceitar. Desconfiara-se daquelas “histórias de mulheres”, e até mesmo um dentre os Doze precisou ver antes de acreditar.
Mesmo assim a Ressurreição do Senhor era afirmada, reafirmada e confirmada por numerosas testemunhas, tanto por gente séria e confiável como por gente simples mas que não tinha razões para mentir a respeito. Pouco a pouco, passou a ocupar lugar central na nova Fé, até ser reconhecida como a base de todo o edifício doutrinal dos cristãos.
Foi assim que o primeiro Papa proclamou solenemente, como uma certeza necessária para quem quisesse aderir ao Evangelho e alcançar a Salvação. Quando se fez necessário substituir um dos membros, no Colégio que dirigia a comunidade ainda pequena – já que o Iscariotes enforcara-se, no terror de perceber o tamanho do crime que fora a sua traição –, insistiu expressamente em que o substituto devia ser “uma testemunha da Ressurreição” (cf. At 1,22 ).
Mais tarde, aquele que se tornaria o maior mensageiro da nova Fé, São Paulo Apóstolo, escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo, definiu: “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, e também é vã é a vossa Fé” (1Cor 15, 14).
Que significava, portanto, essa garantia da Ressurreição? Não apenas uma promessa de ressurreição pessoal, porque Cristo ressuscitara “como primícias daqueles que morreram” (1Cor 15,20), isto é, como o Primeiro de outros, o Primeiro de muitos que também ressuscitariam como Ele, n’Ele e para Ele. A ressurreição dos justos, dos salvos, não realizava somente a antiga expectativa de todos homens, desde sempre inconformados com a finitude da vida, mas aquela que as grandes vozes proféticas de Israel – Isaías, Daniel, Ezequiel e Jó, que já havia dito: “Na minha própria carne, verei Deus” (Jó 19,26)[3]; e assim não respondia somente à interrogação do pagão Sêneca: “Para que eu acreditasse na imortalidade , seria preciso que um homem ressuscitasse”[4].
A Ressurreição consolidava na alma dos fiéis a certeza da vitória sobre a morte e sobre o mundo, o pecado, as fraquezas e vicissitudes da vida. Se a incrível promessa que Jesus fizera de ressuscitar ao terceiro dia se realizara, sendo esta a mais difícil de cumprir, então era possível ter certeza de que as demais se realizariam também, principalmente aquela de que “venceria o mundo” e que aqueles que lhe pertencem assistiriam ao seu regresso em poder e grande glória.
Além disso, eles mesmos tinham visto com seus olhos e ouvido com seus ouvidos a primeira manifestação dessa nova realidade, essa restauração de todas as coisas, esse grande triunfo divino: decorridos quarenta dias após a manhã da Ressurreição , quarenta dias durante os quais Jesus multiplicara as provas da veracidade do Evangelho, e da sua nova vida, “elevou-se à vista dos Apóstolos e uma nuvem o ocultou aos seus olhos” (At 1,9). Que sinal poderia ser maior que a Ascensão, já que até então “ninguém subiu ao Céu, senão Aquele que desceu do Céu, o Filho do homem” (Jo 3,1 3 ) .
Com fatos messiânicos tão poderosos, os fiéis de Jesus Cristo tinham sérios argumentos para entrar em choque com seus compatriotas judeus. Mas teriam eles a força necessária para sustentar esses argumentos enfrentando a opinião geral que rejeitava o messianismo de seu Mestre, e para enfrentar a autoridade judicial? Para tanto, receberiam ainda um terceiro penhor, no cumprimento de outra promessa do Senhor: “Eu vos enviarei o Paráclito, e quando Ele vier, convencerá o mundo a respeito do pecado, da justiça e do juízo (...) Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, Ele vos ensinará toda a verdade” (Jo 16, 7-1 3).
No dia de Pentecostes cumpriu-se mais essa promessa.
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[1] “...Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia. Pedro, então, começou a interpelá-lo e a protestar, nestes termos: ‘Que Deus não permita isso, Senhor! Isso não te acontecerá!’”. Mas Jesus, voltando-se para ele, disse-lhe: ‘Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens!’” (Mt 16,21ss)
[2] A palavra Calvário vem do latim calvarium, que significa calvo ou careca. Deriva daí a palavra ‘calvo’. É uma tradução do grego gólgota, por sua vez derivada do hebraico gulgathan, que quer dizer ‘montanha ou colina arredondada’ e designava um lugar nos arredores de Jerusalém. Como, vista de longe, essa colina lembrava um crânio calvo, a palavra gulgatha ganhou também esse significado, transmitido para as outras línguas. Como esse foi o local da morte de Jesus Cristo, a palavra calvário ganhou o significado que tem até hoje, ligado a sofrimento e martírio. Calvarium (através da forma calvaria) deu origem também à palavra caveira (Dicionário Etimológico, verbete ‘Calvário’).
[3] A passagem traz: “Por detrás de minha pele, que envolverá isso, na minha própria carne, verei Deus” pela trad. da ed. Ave Maria, ou, na trad. do Pe. Matos Soares: “Então, revestido da minha pele, na minha própria carne verei o meu Deus”. A versão da Ècole Biblique de Jerusalém diz: “...quando tiverem arrancado esta minha pele, fora de minha carne verei a Deus”, o que parece contrariar o sentido teológico tradicionalmente dado à passagem. De fato, trata-se de um trecho cujo significado original é de dificílima recuperação, reconhecida na exegese por essa exata razão.
[4] Apud DANIEL-ROPS (1988), pp.17s.
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