Módulo 13: Bíblia 1 | Houve um cânon antigo, anterior à LXX, que definisse a lista dos Livros da Bíblia?

Temos visto a importância da Septuaginta (LXX) para a adesão da Bíblia em sua forma completa  pela Igreja Católica, assim como as contestações dos protestantes que adotam a versão definida pelos judeus para judeus (Cânon de Jâmnia). Prosseguiremos agora com outras alegações dos adversários da Fé católica ainda quanto ao cânon bíblico.


    Certos grupos procuram apresentar como “prova” de um suposto cânon muito antigo (que teria sido apenas confirmado em Jâmnia) os documentos de Flávio Josefo (retratado na imagem que ilustra este módulo) e Áquila (este criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas que leva o seu nome). 


    Quanto a Áquila, seu testemunho é posterior ao Cânon de Jâmnia; apenas por isso, claro, não é possível tomá-lo como prova. Resta Josefo: este poderia representar um argumento um pouco mais respeitável; por isso mesmo, reproduzimos abaixo o texto de sua autoria que é citado nesse debate, extraído de seu escrito intitulado “Contra Apião (ou Apion)’’: 


É, pois, natural ou, melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois que contenham os registros de toda história e que com toda justiça sejam dignos de confiança. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos.  

Desde a morte de Moisés até Artajerjes[1], sucessor de Jerjes [Xerxes] como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés, foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros; os quatro restantes contém hinos a Deus e conselhos morais aos homens. Também desde Artajerjes até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia [mais] uma sucessão rigorosa de profetas. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas.[2] 


    Sim, vemos aí a menção a uma relação bem definida, e muitos se quedam mudos diante deste argumento. O fato, porém, é que uma investigação razoavelmente aprofundada vai demonstrar que esse testemunho simplesmente não corresponde à verdade histórica dos fatos. Vejamos. 

    Cite-se de passagem, logo de início, que não é possível precisar se esse testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e o seu escrito. De imediato, pois, todo argumento baseado nesse documento se torna inconclusivo[3].

    Essa questão importantíssima quanto à data, porém, não é o problema mais importante dessa tese. Ocorre que a divisão de Josefo, de 22 Livros, é diferente da divisão tripartida posterior, especialmente em relação aos conteúdos citados no tratado Baba Batra[4]. Assim, temos que a lista de Josefo de fato não se impôs no judaísmo, o que não poderia ocorrer se houvesse essa autoridade que ele tentava lhe atribuir. Ora ainda na época do próprio Josefo o cânon de de 24 livros era mais popular.

    Também é preciso considerar que a passagem da Carta contra Apião é um escrito apologético, produzido com o fim de contrariar não só o gramático egípcio Apião como também a todos os que negavam a respeitável antiguidade dos judeus e da sua literatura. Josefo frequentemente usou de grandes exageros em seus escritos, com o objetivo de elaborar suas defesas e provar seus pontos de vista em defesa do judaísmo: trata-se, nesse sentido, de um verdadeiro propagandista contra os intelectuais pagãos do seu tempo. Quando ele afirma que “ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada” do conjunto de livros sagrados que cita, é impraticável levá-lo a sério, pois é quase impossível considerar que ele mesmo, um homem culto, “não estivesse a par das múltiplas discrepâncias textuais comuns às versões hebraica, grega e aramaica das Escrituras judaicas em circulação no século I”[5].

    Mais do que isso, o prólogo da tradução grega do Livro do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), escrito por volta de 130 a.C. e portanto bem anterior ao testemunho de Josefo, realmente o contradiz frontalmente. Lemos aí: 


Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes. (...) Foi assim que, após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos pelos nossos antepassados.... 


    Enquanto que o testemunho de Josefo parece procurar restringir a definição de um conjunto de Livros sagrados ao tempo de Esdras, “porque [depois de ‘Artajerjes’/Artaxerxes, isto é, depois de Esdras] não houve uma sucessão rigorosa de Profetas”, o Eclesiástico é mais amplo e fiel à História ao afirmar: “...por outros escritores que os sucederam [os Profetas], recebemos [também] inúmeros ensinamentos (...)”. 


    O testemunho do Eclesiástico refere-se diretamente a livros posteriores ao tempo dos Profetas. Veja-se o que pesquisador protestante Leonard Rost tem a dizer sobre isso: 


Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros que parecem ter gozado de bastante estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I d.C.[6] 


    É digno de nota também que, em Josefo mesmo, o trecho principal está aberto para interpretações diversas: “Havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”. Pode-se entender daí — e alguns efetivamente assim o entendem — que Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume, com os livros escritos antes deste período (protocanônicos), pois tal coisa se configuraria em um acréscimo aos primeiros. Está dizendo apenas que nada foi alterado nos textos presentes nesses livros, nada mais e nada menos. Josefo não se refere à adição ou subtração de livros a outros conjuntos de livros preestabelecidos. 

    Encerrando afinal o assunto sobre a teoria do cânon preexistente, vejamos em resumo algumas de suas principais inconsistências: 

        1. Se o suposto cânon antigo correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que então era comumente usada a LXX, com o seu catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e de Massada?; 

        2. Se esse suposto cânon preexistente fosse idêntico ao novo cânon definido em Jâmnia, então não teria sido necessária essa nova definição, como num evento que procedeu a uma nova escolha de Livros, afinal, aquele mesmo conjunto de textos já vinha sendo observado desde tempos muito antigos. Bastaria reafirmá-lo, sem a criação e a nomeação de um novo cânon; 

        3. Por outro lado, se esse suposto cânon correspondesse aos livros da LXX, então não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; sendo assim, não teria sido possível estabelecer-se o Cânon de Jâmnia; 


        4. Os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia, e até hoje guardam como sagrados os livros da LXX. Se realmente tal suposto cânon bíblico existisse e estivesse de tal forma estabelecido, não haveria nenhuma disputa entre os judeus sobre esse assunto; todos adotariam naturalmente o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.


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[1] Artaxerxes na tradução mais comum – refere-se aos tempos do Profeta Esdras, portanto. 


[2] JOSEFO (2006, pp. 21-22).


[3] É geralmente aceito que ‘Contra Apion’ tenha sido concluído em torno do ano 94 ou posteriormente; já o Cânon de Jâmnia é comumente datado como sendo do ano 90. Nenhuma dessas datas, porém, é conclusiva; sabemos apenas que ambos os eventos localizam-se nos últimos anos do século I d.C. Com efeito, não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou não ao Cânon de Jâmnia; uma incerteza que compromete completamente seu testemunho. De fato, avançando além, historiadores veem indícios de que ele tenha sido influenciado pelo Cânon de Jâmnia.


[4] Tratado do Talmud que integra a lei oral do judaísmo. Originalmente, junto com Bava Kamma e Bava Metzia, formou um único tratado chamado Nezikin.


[5] Cf. MCDONALD (2014, cap. 3).


[6] ROST (1980, p.19)

Módulo 13: Dogmática 1 | O Depósito da Fé


Há verdades essenciais que devemos crer, simplesmente porque representam a perfeita adequação entre o que pensamos e aquilo que de fato é. E também há enganos, quando o que consideramos é ilusório ou está em desacordo com o fato. Onde podemos, então encontrar as verdades que devemos crer? Podemos encontra-las nas duas chamadas "fontes da Revelação": as sagradas Escrituras (Revelação escrita) e a santa Tradição (Revelação oral), conforme a autêntica doutrina católica definida pelo Concilio de Trento: fontes de toda verdade salutar e da disciplina dos costumes são os Livros escritos e as tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos dos próprios lábios de Cristo ou a eles ditados pelo Espírito Santo, chegaram até nós como que transmitidas pelas mãos dos mesmos.


    Quem discute com protestantes, ouvirá infalivelmente esta objeção: “Católicos admitem como verdade coisas que não estão na Bíblia (por exemplo, a perpétua virgindade de Maria); assim, estão adotando opiniões humanas que não são parte da Revelação divina”.


    Quando não é maliciosa, essa objeção é ingênua. Na feliz expressão de São Tomas More: "A Palavra de Deus é tão forte não escrita quanto escrita"; segundo a doutrina católica, a Bíblia não é a única fonte da Revelação.


    De fato, Jesus nada escreveu e jamais disse a seus Apóstolos que escrevessem, mas antes ordenou-lhes que pregassem. A Igreja primitiva se estabeleceu-se e cresceu por obra do Magistério oral e não por meio da leitura; somente décadas após a morte do Senhor começaram a surgir os escritos apostólicos. Estes, como é sabido, são muito incompletos. Os Evangelhos conservaram parte reduzida dos ensinamentos e milagres de Jesus, como atesta São João (21, 25). Tampouco foi guardado tudo quanto escreveram os Apóstolos (São Paulo cita epístolas suas que foram perdidas). As verdades que eles ensinaram de viva voz, conservaram-nas seus discípulos e os sucessores destes, segundo recomendava S. Paulo a Timóteo: "O que ouviste de mim diante de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes de instruir também a outros" (2 Tim 2,2). Assim é que se formou a cadeia da Tradição — doutrinal, teológica, dogmática, apologética.


    Por certo, em tantos séculos que nos separam da idade apostólica, qualquer tradição humana já se teria deturpado há muito, muito tempo; mas, nesse caso privilegiado, o que é que lhe garante a fidelidade? A perpétua Assistência prometida por Cristo à sua Igreja (Mt 28,20).


    Dessa Tradição, encontramos nos escritos dos Santos Padres e Doutores, assim como nos Símbolos de Fé, nos decretos dos Concílios, nas definições dos Papas, sua expressão fidelíssima.


    Sobre o Magistério da Igreja pretendemos aprofundar, mais adiante, nesta Formação. Quanto aos Padres da Igreja, os bons teólogos nunca cessam de examinar as disciplinas que lhes dizem respeito —  a Patrologia e a Patrística — e de encontrar aí os fundamentos da Tradição. Os Padres são autênticos testemunhos da Fé. Quantas conversões de protestantes nascem do estudo honesto dos seus materiais. 


    Observemos, todavia, que uma doutrina patrística só terá valor decisivo como porta-voz da Tradição dogmática quando refletir o consenso moralmente unânime dos Padres; não bastam textos isolados deste ou daquele, nem mesmo de um pequeno grupo. Nesse caso, só lhes caberia a autoridade de teólogos particulares. É indispensável, ainda, que os Padres deem tal doutrina como revelada por Deus e não apenas como simples opinião teológica. Existindo essas condições, cessa qualquer dúvida: estamos positivamente em presença de um enunciado que pertence à Fé. Com efeito, se o conjunto dos Padres se enganasse, ter-se-ia por força enganado a Igreja, pois eles eram os mestres em ortodoxia e os fiéis apenas os seguiam. É contra a Palavra de Cristo que a Igreja, na sua totalidade, em qualquer época, estivesse no erro — Inevitável não pensar em nossos tristes tempos, de muitas confusões e desmandos constantes partindo dos homens que herdaram dos Apóstolos suas posições, mas que não deixam de se deparar, sempre, com setores da Igreja que resistem a eles e mesmo os confrontam.


    Também o conjunto dos fiéis, a Igreja discente, pode ser um órgão da Tradição, por exemplo, quando os teólogos ensinam em conjunto que tal doutrina é de fé, ou quando a totalidade dos católicos professa uma crença (por exemplo, na Assunção de Maria). Evidentemente, nesses casos a Igreja discente reflete apenas o ensinamento que recebeu da Igreja docente; o povo católico crê o que lhe ensinam seus pastores; logo um erro desta sorte, em que incidisse o povo, revelaria um erro na Igreja docente, o que é impossível.


    Sagradas Escrituras e Tradição constituem, ambas, o "Depósito da Fé" (1Tm 6,20) que se acha, de uma vez e para sempre, completo com a morte do último Apóstolo. Motivo pelo qual as revelações privadas que se produziram no decurso da história do catolicismo, ainda que feitas a Santos realmente eminentes (por exemplo: do Sagrado Coração a S. Margarida Maria; de Nossa Senhora aos Pastorinhos de Fátima) não podem exigir de nós um assentimento de fé divina. Serão, sempre, casos de simples crenças humanas, embora piedosas e mesmo que sejam, muito provavelmente, verdadeiras.



Desenvolvimento da doutrina? Progressão do sistema de crenças? A Fé se elabora ou se compreende?


É falso considerar o "Depósito da Fé" como uma espécie de esboço ou mesmo um germe que se se desenvolve pouco a pouco. Na realidade, trata-se de uma plenitude; plenitude tal que são necessários séculos para que os homens possam aprofundar a verdade dos ensinos do Cristo e dos Apóstolos. O que progride não é, pois, o Depósito, mas o nosso conhecimento das riquezas nele entesouradas. Esse conhecimento vai se completando e determinando, de geração em geração, por obra do Magistério da Igreja, mas jamais poderá haver um novo ensinamento que contrarie outro dado anteriormente.


    A função da Igreja é "guardar santamente e expor com fidelidade" o Depósito a ela confiado”[1].


    • Guardar: conservar o que foi revelado, protegê-lo contra as deturpações, jamais ensinar falsos dogmas ou falsos entendimentos, não contidos no Depósito.


    • Expor: discernir infalivelmente o sentido exato da Revelação a fim de propô-lo à crença dos fiéis; explicá-lo sem erro possível. Uma vez mais, neste ponto, somos confrontados com as grandes novidades trazidas pelo concílio Vaticano II. Nenhum dogma da Igreja pode, jamais, apresentar uma "novidade", mas sim meramente definir, no decorrer dos tempos, o que sempre foi crido. As verdades de Fé não são frutos de “novas revelações”, muito menos invenções dos homens que conduzem a Igreja na Terra. O que pode surgir de "novo" em termos de Doutrina se limita sempre ao campo das formulações das verdades reveladas que já se encontravam explicitamente expressas nas Escrituras ou na Tradição (ou em ambas), mas: 


        1) sua impugnação por algum heresiarca exigiu definição solene (por exemplo, a divindade do Verbo), ou


        2) não haviam ainda sido expressas com a necessária clareza, ainda que estivessem implicitamente contidas no Depósito, exigidas por uma verdade já explicitamente revelada. 


    Basta uma simples explicação do Magistério infalível para trazer tais verdades à luz (por exemplo: a Imaculada Conceição).


    É necessário, pois, distinguir-se com clareza entre o evoluir da Revelação e o progresso dogmático. O primeiro estendeu-se, por diversas fases, desde Adão até a morte do derradeiro Apóstolo; completou-se e encerrou-se então definitivamente[2].


    Os que sonham com revelações novas, superiores ao cristianismo, como os joaquimitas na Idade Média ou os teosofistas e espíritas de hoje em dia, esquecem das palavras cominatórias de S. Paulo: "Ainda que nós mesmos ou um Anjo do Céu anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!" (Gl 1,8).


    E para não deixar sombra de dúvida, logo a seguir repete a mesma coisa, insiste o Apóstolo: 


“Como já vo-lo dissemos, agora de novo o digo: Se alguém vos anunciar um Evangelho diferente daquele que recebestes, seja anátema. Porque, agora, é o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo.”
(Gl 1,9s)


    Severidade bem merecida; crer em novas revelações, ou mesmo espera-las, é fazer sumo agravo a Deus, como se o Pai não nos tivesse dado o próprio Filho, pelo Qual nos disse tudo o que precisamos saber para realizar nosso fim sobrenatural. O mesmo Pai solenemente declarou: "Este é o meu amado Filho, em que me hei comprazido, escutai-o!" (Mt 17, 5). Donde se concluir: 


"O que crê no Filho de Deus, tem em si o testemunho de Deus. O que não crê no Filho, faz Deus mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus deu de seu Filho"
(1 Jo 5, 10).


    Se a Revelação está definitivamente encerrada, por outro lado, sim, nosso conhecimento dela deve progredir, mas dentro da mesma Fé. Aumenta-se a riqueza e a nitidez do que cremos à medida em que a Igreja, assistida infalivelmente pelo Espírito Santo, vai explicando e propondo com maior clareza e de maneira definitiva o que já foi revelado por Cristo a seus Apóstolos. 


    Por consequência, não pode haver no século XXI verdades reveladas novas, ou mais verdades do que já havia no fim do 1º século; menos ainda é possível existir qualquer coisa que contrarie o que havia sido dito, ensinado e definido antes. Há tão somente conhecimento mais claros ou esmiuçados, porque houve proposição mais refinada dada pela Igreja; formulações novas de antigas verdades.


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[1] Concilio do Vaticano, Denzinger, n. 1836. Ao tratar do Magistério da Igreja explanaremos mais detidamente estas noções.

[2] Pio X, decreto Lamentabili, n. 21 (Denzinger, n. 2021).

Bibliografia do módulo 12

 

BIBLIOGRAFIA utilizada neste volume e recomendada*


PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação teológica, vol I: o Mistério da Igreja, 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1956.


TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística, 6ª ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1961.


FABER, Frederick William. Progresso na vida espiritual. São Paulo: Cultor de Livros, 2019**.


CHARBEL, Antônio. Introdução Geral e Especial ao Antigo Testamento; Pentateuco e Livros Históricos, São Paulo: Realeza, 2022.


DANIEL-ROPS. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, São Paulo: Quadrante, 1988.


SOARES, Ezequias. Septuaginta: Guia histórico e literário, São Paulo: Hagnos, 2009.

THACKERAY, H. St. J. Septuagint. In: International standart Bible encyclopedia. Albany: AGES, 1997.

WISE, Michael O., et al, The Dead Sea Scrolls: A NewTranslation, SanFrancisco: HarperOne, 1999.

JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega. Lisboa: Edições 70, 1991.

BERARDINO, Ângelo Di. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. 

Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulus, 2002.

SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras traduzidas pelas Carmelitas Descalças de Santa Teresa do Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1960.


        ** Baixar o fascículo 12 (PDF) para impressão

Módulo 12: Teologia Ascética e Mística 2 | Modo de se subir pela senda ao Monte, por São João da Cruz

** Disponibilizamos para download neste link a obra “A Subida do Monte Carmelo” juntamente com “Noite Escura” e “Cautelas”, todas de São João da Cruz, traduzidas pelas carmelitas descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, com prefácio e introduções do nosso Padre Maurílio T. L. Penido.

Modo de se subir pela senda ao Monte —  e aviso para não seguir caminhos desviados por São João da Cruz (introdução à Subida do Monte Carmelo)


    Modo para chegar ao Tudo


    Para chegares ao que não sabes, Hás de ir por onde não sabes. 

    Para chegares ao que não desfrutas, Hás de ir por onde não desfrutas. 

    Para vires ao que não possuis, Hás de ir por onde não possuis. 

    Para vires a ser o que não és, Hás de ir por onde não és.



    Modo de possuir tudo


    Para vires a saber tudo, Não queiras saber coisa alguma. 

    Para vires a saborear tudo, Não queiras ter gosto em coisa alguma. 

    Para vires a possuir tudo, Não queiras possuir coisa alguma. 

    Para vires a ser tudo, Não queiras ser coisa alguma.



    Modo para não impedir o tudo


    Quando reparas em alguma coisa, Deixas de arrojar-te ao tudo. 

    Porque para vires de todo ao tudo, Hás de deixar de todo ao tudo. 

    E quando vieres a tudo ter, Hás de tê-lo sem nada querer. 

    Porque se queres ter algo em tudo, Não tens puro em Deus teu tesouro.



    Indício de que se tem tudo


    Nesta desnudez acha o espírito sua quietação e descanso, 

    porque, nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo, 

    porque está no centro de sua humildade; 

    pois quando cobiça alguma coisa, nisto mesmo se fatiga.

Módulo 12: Teologia Ascética e Mística 1 | “A Subida do Monte Carmelo” de São João da Cruz — 2


Ao término do módulo anterior
, citávamos a prática das virtudes que Deus espera daqueles que o amam e querem viver, junto d’Ele, uma vida interior mais elevada, com as Bem-aventuranças evangélicas e os dons que estas contém e nos conferem[1]. Todavia, não se tratam aqui de elementos essenciais para a nossa salvação. Há uma lista de virtudes que são típicas daqueles que seriamente buscam santificar as suas vidas, mas alguém ainda poderá se salvar, por exemplo, sem ser perfeitamente manso. Também sabemos que nem todos os cristãos sofrerão perseguições por causa da justiça ou serão injuriados, perseguidos e caluniados por causa de Cristo, mas nem por isso deixarão de alcançar o Reino de Deus. Ocorre que, aqui, Nosso Senhor se refere ao caminho realmente estreito e restrito da perfeição cristã.


Nosso Senhor, na passagem em questão, não se refere a algum aspecto ou prática da Teologia moral, mas sim às práticas da perfeição. A primeira coisa que se exige de quem quer chegar ao topo da montanha espiritual, a vida da perfeição, da divina União com Cristo, é que essa pessoa creia, quer dizer, a adesão de Fé às verdades que Ele nos revela. Deus, Ser eterno e infinito, é para nós totalmente incompreensível: Ele se situa em uma realidade (muito simplesmente chamada ‘o Céu’ nas Escrituras) que nos é inacessível, além do espaço e do tempo, logo transcendente de todas as limitações que a nossa dimensão nos impõe. Por isso, pede-nos a adesão integral de nossa razão, sendo este o único meio de nos aproximarmos d’Ele. A transformação que a divina União vai proporcionar só é possível mediante esta adesão incondicional.

Há, por certo, estágios para se atingir essa divina União, que alguns autores dividem em três casas ou vias, outros em quatro, a saber: a 1) Via Purgativa; a 2) Via Iluminativa; a 3) Via Contemplativa e a 4) Via Unitiva. As Vias Iluminativa e a Contemplativa são bastante semelhantes, de modo que podem ser (e ás vezes são) estudadas conjuntamente. 


Os seres humanos não foram trazidos à existência e nem estão neste mundo árido para desfrutar dos seus efêmeros prazeres ou para atravessar o tempo que recebem em suas vidas de modo semelhante ao dos animais irracionais – num ciclo irrefletido de “nascer, crescer, reproduzir-se e morrer”, tentando divertir-se ou gozar dos pequenos prazeres que lhe ficam ao alcance sempre que possível, sem nenhuma finalidade mais alta ou que confira sentido a essa existência vazia. Somos criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), amadas pelo mesmo Deus a tal ponto que por amor de nós se fez homem, desceu à nossa realidade e entregou-se em sacrifício pelo nosso bem. Por isso é que enfrentamos desde o primeiro dia de nossas vidas nesta Terra dura a dor, o sofrimento, a frustração, a carência de algo que sequer sabemos identificar, mas cuja ausência é tão importante e tão nítida que nos devora intimamente, a tal ponto de nos tirar a paz mesmo quando tudo parece bem.


Ainda que a pessoa humana esteja saciada em todas as suas necessidades físicas: alimentada, aquecida, sob um teto sobre sua cabeça, limpa e ainda cercada de outras pessoas que ama... algo falta. Sabe que esse algo é a coisa mais importante, e de algum modo isso é sentido tão profundamente que lhe inquieta. E essa pessoa vai buscar saciar essa falta, preencher esse vazio de muitas maneiras, sempre sem sucesso. O máximo que consegue é distrair-se por algum tempo, até que a sensação de vazio profundo retorne, e a deprima. Por quê? Á essa pergunta, Santo Agostinho respondeu magistralmente em suas Confissões: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Ti”!


Por isso é que Nosso Senhor ensinou aquele que insistia com Ele, pedindo-lhe a chave da Perfeição e da Vida: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). De modo semelhante Ele diz que a cada dia precisamos, cada um de nós, tomar a nossa cruz para segui-lo (Lc 9,23).


Para começar, é preciso ser honesto e assumir: nenhum de nós queria escutar essas coisas. Como seria mais fácil se Ele tivesse dito algo parecido com o que diz o “pastor” da televisão: “Venham, paguem o dízimo e terão prosperidade financeira em suas vidas! Façam gordas ofertas no culto e Deus devolverá em dobro! Sejam fiéis nas doações, participem das nossas campanhas e todos os seus problemas serão resolvidos!”... Seria bem mais fácil, assim, e é algo assim que, humanamente, desejaríamos ouvir; por isso mesmo é que esse tipo de pregação falsificada sempre faz muito sucesso. A porta larga para o caminho espaçoso sempre será uma grande tentação. Mas realmente não é assim que a vida interior funciona: se alguém tenta nos convencer de que a porta estreita é larga, esse tal não merece crédito.


Mas a contrapartida é importante, porque isso também não quer necessariamente dizer que será preciso assumir uma vida só de dores e de sacrifícios, dizer adeus a todos os prazeres da vida ou tornar-se uma pessoa amargurada, triste, seca como a figueira que não frutifica. Ao contrário. Muitas almas se perderam, em tempos passados, por causa de uma ênfase exagerada que diretores espirituais davam ao sacrifício, e pela pouca ou nenhuma atenção às consolações da vida de santidade, as quais Deus nos oferece para nos possibilitar a perseverança. E Nosso Senhor já tinha prevenido aos seus que não agissem assim, quando criticou os hipócritas que “atam fardos pesados e difíceis de suportar e os põem aos ombros dos outros; mas eles mesmos nem com o dedo querem movê-los...” (Mt 23,4).


A coragem de abrir mão das ilusões e das falsas esperanças deste mundo é uma parte do processo sempre necessária, sim, mas isso não significa entregar-se a uma vida só de renúncias e abstenções. Não se trata de não poder ter, mas sim de não viver como se a riqueza material fosse a coisa mais importante e de não colocar as nossas posses no centro das nossas vidas; trata-se de desapego, de manter um "espírito de pobre" (cf. Mt 5,3). São Paulo Apóstolo, nas Sagradas Escrituras, resumiu tudo o que buscamos entender aqui em poucas palavras, ao dizer que "aqueles que têm, devem viver como se não tivessem":


...e aqueles que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem, porque a figura deste mundo passa. Quisera ver-vos livres de toda preocupação. (1Cor 7,29-32)


    Novamente, Santo Agostinho vem ao nosso encontro; em sua Vida Feliz ele enfrentou francamente o problema do dualismo, a partir da tradição platônica, o neoplatonismo, e da Tradição cristã. Ainda parecia figurar em seu pensamento uma dicotomia básica que opunha este mundo imperfeito ao mundo perfeito, segundo o platonismo o mundo sensível e o mundo inteligível, denominados por Agostinho de mundo carnal e mundo espiritual.


Todas as coisas efêmeras e ilusórias, logo perniciosas na medida em que nos fazem perder tempo, distraindo-nos daquilo que realmente importa, estão aqui conosco, nesta nossa realidade, e as coisas verdadeiras estão lá, fora de nosso alcance: muitas dicotomias foram extraídas dessa triste constatação. Mas Santo Agostinho rejeitou a concepção maniqueísta da existência de dois princípios antagônicos, um bom e outro mal, em eterna oposição. Comparando a felicidade da alma como a saciedade do corpo, opõe aqueles que possuem o supremo Bem (verdadeira felicidade) àqueles que não o possuem, e portanto são infelizes.


A sabedoria está na justa medida da alma. A palavra “modéstia” é oriunda de modus (medida), e temperança, de temperies (proporção). Onde há medida e proporção, não existe nem a mais nem a menos que o necessário. Aí se encontra precisamente a plenitude. Termo esse que opusemos à indigência. E é preferível o emprego da palavra “medida” ao de “abundância”. Pois essa última traz certa ideia de afluxo e transbordamento, algo em profusão. Ora, onde há mais do que é conveniente, constata-se falta de moderação, pois o excesso ocasiona essa falta de medida. Por outro lado, a indigência não deixa de ter certa relação com a abundância. Ao passo que a [justa] medida ignora um e outro: tanto o demais como o de menos. Se analisarmos, contudo, a ideia de “opulência”, achamos que possui necessariamente a medida. Pois, com efeito, o termo “opulência” vem de ops (ajuda). O excesso, porém, como poderia nos ajudar, quando muitas vezes vem nos embaraçar mais do que o faz a penúria? Portanto, no que há em excesso ou em insuficiência existe falta de medida e risco de indigência. Logo, a sabedoria é a medida da alma, pois ela é, evidentemente, o contrário da estultícia. Ora, a estultícia é indigência, e esta tem como contrário a plenitude. Logo, a sabedoria é plenitude, e a plenitude implica a medida. Portanto, a medida da alma encontra-se na sabedoria. (...) Para ser feliz é preciso possuir a sabedoria.

Ser feliz não é outra coisa do que não padecer necessidades, e isso é também ser sábio. Agora, se me perguntardes o que vem a ser a sabedoria — conceito a cuja análise e aprofundamento a nossa razão tem-se consagrado até o presente quanto pode — dir-vos-ei que a sabedoria é simplesmente a moderação do espírito (modus animi). Isto é, aquilo pelo que a alma se conserva em equilíbrio, de modo a não se dispersar em excessos ou encolher-se abaixo de sua plenitude. (...) Quando alguém, tendo encontrado a sabedoria, faz dela o objeto de sua contemplação e a ele se apega, sem se deixar seduzir por coisas vãs, sem se voltar mais para as aparências enganosas cujo peso arrasta e submerge em profunda objeção, tudo se desfaz, por estar ele abraçado a seu Deus. Então, essa pessoa não teme mais a imoderação, nem carência alguma e, por conseguinte, nenhuma infelicidade. Concluamos, pois, que toda pessoa para ser feliz deve possuir sua justa medida, isto é, possuir a sabedoria.[2]


A felicidade está na posse do Sumo Bem: Deus. Logo a saciedade da alma só é encontrada na posse de Deus; mas o próprio Deus quer que os homens o identifiquem como Sumo Bem e o busquem. Portanto, viver bem ou viver conforme a vontade de Deus significa buscar a Deus, e essa busca deverá se equilibrar sobre uma justa medida. A introdução dessa justa medida, este meio-termo, leva Agostinho a considerar que neste mundo o homem não está no mundo inferior apenas em oposição ao superior, mas ele deve estar no mundo inferior em direção ao superior. Não há apenas a posse de Deus (salvação) e a sua perda (perdição), mas também uma possibilidade de virtude por meio da qual se pode seguir gradativamente em direção a Deus.


          Portanto, buscar a felicidade é reconhecer a ausência, e a busca é o estigma daquele que se reconhece como não possuidor, mas isso não implica em infelicidade e sim numa insuficiência e incompletude que peregrinam em direção à felicidade e a plenitude.

Todo este preâmbulo à vida interior é importante para fazer entender que buscar uma vida de perfeição interior, em íntima comunhão com Deus, se por um lado não é tarefa simples, e sem dúvida vai exigir coragem e desejo férreo, por outro não se localiza além de nossas capacidades nem deve se confundir com tristeza, languidez ou sofrimento, ao contrário: um dos frutos de uma vida interior bem vivida é a mais profunda alegria.
    

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[1] Recapitulando as promessas do Sermão da Montanha (Mt 5), 1) quem se fizer pobre em espírito* herdará o Reino dos Céus; 2) os que choram (por amor à justiça) serão consolados; 3) os mansos herdarão a Terra; 4) os que têm fome e sede de justiça serão saciados; 5) os misericordiosos alcançarão misericórdia; 6) os puros de coração verão a Deus; 7) os pacificadores serão chamados filhos de Deus; 8) dos que sofrem perseguição por causa da justiça é o Reino dos Céus, 9) os que são injuriados, perseguidos e caluniados por causa de Cristo receberão uma grande recompensa no Céu.

[2] SANTO AGOSTINHO. A vida feliz, n.s 32s. A sabedoria: justa medida da alma, pp. 153.

Módulo 12: História da Igreja 1 | O frescor da proximidade com o Evento fundante


Os primeiros fiéis
da Igreja reuniam-se aos domingos, o Dia do Senhor[1], partindo o pão com grande júbilo, sempre renovado, mantida a memória da Ressurreição do Salvador – que não era senão a antecipação de nossa própria entrada gloriosa para a vida eterna –, louvando a Deus e fazendo alternar o Maranatha (‘Vinde, Senhor’: voltai para nos resgatar deste mundo e desta existência de sofrimentos) com os hosanas que proclamam a sua certeza quanto à realização messiânica, unindo assim o passado da sua raça ao futuro da sua Fé, e sentindo com a alma vibrante que, ao consumirem o Pão da Vida, realizavam algo mais do que um simples rito de comemoração : uma participação na Vida divina. 

Foi , sem dúvida, por meio da Comunhão Eucarística que estes primeiros fiéis ganharam  consciência do que eram realmente[2], depois de terem recebido o sopro do Espírito Santo: mais do que uma assembleia de irmãos unidos pela mesma crença e em torno de uma Doutrina, mais do que uma reunião piedosa ou da escola de mais um mestre, eles eram uma sociedade de homens que viviam em Cristo e para Cristo, uma comunidade de Santos: a Igreja, o próprio Corpo Místico do mesmo Cristo e a sua continuidade histórica no mundo, até o seu retorno triunfal.

Viver e m Cristo – por Ele e para Ele –, esse é, com efeito , o desígnio único dessa Igreja criança. Sobre a organização logística da instituição Igreja, pouco podemos apreender com certeza, mas há uma realidade que se impõe ao nosso espírito quando consideramos as características daquela primeira comunidade de crentes em Jesus-Deus-Conosco: a de um esforço admirável para pôr em prática os preceitos do divino Mestre, e para levar a cabo, em cada alma convertida, a renovação completa que Ele exigia. O texto dos Atos está semeado de pequenas frases preciosas que revelam essa atmosfera: a alegria e a simplicidade de coração  estão por toda a parte. “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32). Praticava-se verdadeiramente essa caridade doce e humilde, essa amizade de irmãos que São Pedro louvará em sua primeira Epístola. E a prova de que este quadro não foi idealizado ou romantizado, nem se trata de mera propaganda, mas que é verdadeiro, é que o Autor dos Atos não hesita em acentuar-lhe também as sombras, deixando ver que a natureza humana, não deixando de se fazer presente, introduzia aí mesmo traços de miséria e de pecado.

Mas o fato é que a Presença do Cristo ainda está ali, muito próxima. Dentre os que dirigem a comunidade, muitos o conheceram pessoalmente, viram-no, tocaram-no, seguraram suas mãos, tiveram sua dura cerviz destruída pela doçura do seu olhar, sua razão desafiada por sua sabedoria irrefutável. E essas pessoas evocam recordações pessoais e contam o que viram e ouviram quando Ele ensinava no lago de Tiberíades ou no meio da multidão, no átrio do Templo ou em peregrinação pelas suas cidades e povoados. Reúnem-se todos os pormenores, a memória ainda fresca e muito vívida quanto a tudo que Ele fez e ensinou, e assim se elabora uma catequese que dará origem à Tradição oral, depois transcrita, convertendo-se nos Evangelhos. 

Nota-se sensivelmente a presença do Mestre no seio das almas; corno já acontecera com Maria Madalena e com os discípulos de Emaús, cada um experimenta essa Presença intimamente, com urna certeza que inquieta e com um ardor que incendeia.

Manifesta-se uma vida espiritual intensa. As crentes amigavelmente rivalizavam entre si no seu esforço pela santidade. Há uma abundância de graças por toda parte; multiplicam-se os prodígios, as curas, os milagres, a libertação, enfim, de uma vida miserável e sem sentido. De forma incessante e bem visível, realiza-se a promessa:  “Quem crê em Mim, (...) do seu interior manarão rios de água viva” (Jo 7,38). E como a expectativa apocalíptica que jaz no coração de Israel se mistura secretamente com estas imagens, os discípulos perguntam-se se porventura o retorno glorioso do Messias não estará muito próximo e se Ele não voltará a aparecer sobre as nuvens do céu, numa manifestação assombrosa, já agora, talvez hoje, amanhã, quiçá na próxima semana. Durante a celebração da Missa talvez Ele venha! As “virgens prudentes” têm que vigiar o azeite de suas lâmpadas e prepararem as almas para a visita do Esposo! Vem logo o Senhor a cobrar a cada um os seus frutos,  o rendimento dos talentos confiados a cada um.



Está próximo o fim destas coisas


Um aspecto importante e muitas vezes comentado desta primitiva era cristã deriva ao mesmo tempo do ideal de fraternidade e da convicção da proximidade da segunda vinda de Cristo, sendo que este último elemento têm importância especial no estudo da Teologia. Os Atos relatam que os fiéis punham tudo em comum, chegando até aqueles que possuíam campos ou casas os venderem para trazer o produto da venda aos pés dos Apóstolos, sendo que tudo se repartia, dando-se a cada um segundo a sua necessidade” (At 4 ,32-35 ). Esta parece ter se tornado a norma comum entre os cristãos, que seguiam à risca o conselho dado pelo Senhor ao jovem rico: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” (Lc 18, 22). Tal costume extraordinário não era exigido por lei ou preceito, mas essa prática comunitária era, sem dúvida, admirável. Nesse período, a fraternidade cristã era mais que uma palavra ou um ideal, mas uma realidade palpável que só podemos imaginar. Um dos fatores para que assim fosse, ainda que não o único, era justamente o sentimento profundo e generalizado de que viria, muito brevemente, a Parusia, o retorno do Senhor, tanto assim que, ao que parece, havia alguns que já não queriam trabalhar, esperando a consumação dos séculos que, segundo acreditavam, estava já às portas (2Ts 3,7-12).

De fato, o filósofo ateu Bertrand Russell alegava que Jesus não podia sequer ser considerado um sábio, porque achava que sua Segunda Vinda se daria ainda antes da morte das pessoas que viviam naquele tempo (referindo-se a Mt 10,23 e 16,28). Muitos outros pensadores ateus (como o autor de best-sellers Bart Ehrman, recentemente) seguiram Russel nessa contestação, como seria de se esperar. Como vimos, os primeiros cristãos pareciam pensar assim. Inclusive, depois de certo tempo houve quem começasse a se inquietar porque tardava a Parusia. O primeiro Papa respondeu a isso da seguinte maneira: “O Senhor não atrasa o cumprimento de sua promessa, como alguns pensam, mas usa da paciência para convosco. Não quer que alguém pereça; ao contrário, quer que todos se arrependam”; depois de ter dito: “Mas há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pd 3,8s.).

Não se pode negar, porém, que temos Jesus dizendo textualmente ao povo que o ouvia, no Evangelho segundo São Mateus: “Em verdade vos declaro: muitos destes que aqui estão não verão a morte, sem que tenham visto o Filho do Homem voltar na majestade de seu Reino” (16,28), e ainda: “Em verdade vos declaro: não passará esta geração antes que tudo isso aconteça” (24,34), referindo-se à Segunda Vinda e ao fim do mundo, o que lhe fora perguntado por seus discípulos (24,3).

Bertrand Russell entendeu exatamente o que Cristo estava dizendo? C. S. Lewis viu o que Russell mais tarde veria também. Para Lewis, esses versículos quase abalaram sua fé completamente. Onde Russell disse que Jesus fez algumas suposições ruins sobre o futuro, Lewis foi mais longe e perguntou se Jesus tinha “enganado” seus discípulos nessas passagens! Mas, diferente de Russell, Lewis não renunciou à fé em Cristo por causa disso. Ao contrário, ele notou que o mesmo Cristo, no mesmo Livro e no mesmo capítulo, apenas dois versículos depois, selaria a questão quanto ao tempo da Parusia, dizendo: “Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe, nem mesmo os Anjos do Céu, mas somente o Pai” (24,36).

Recentemente, o supracitado Ehrman usou esse aparente dilema para promover o seu ataque ao Cristianismo, a Jesus Cristo e à Bíblia. Páginas ateístas, que não perdem tempo em abarcar e utilizar qualquer novidade, informação ou alegação contra a Igreja e os cristãos, geralmente sem se dar ao trabalho de pesquisar se são verídicas, começaram a espalhar suas alegações, incomodando a Fé de talvez milhares. Mas a verdade é que, durante muito tempo, os críticos da Bíblia tiveram uma enorme dificuldade para justificar o seu ateísmo quando confrontados com as profecias bíblicas. Afinal, uma profecia, escrita séculos antes dos eventos descritos, dar detalhes precisos, torna simplesmente impossível negar o seu cumprimento. Vejamos isso melhor.

Por exemplo, no capítulo 53 do profeta Isaías, escrito em torno de 700 a.C., há mais de quarenta informações preditivas sobre o futuro Messias. Um recurso comum ateísta para escapar de tais profecias é a alegação de que elas foram escritas depois dos acontecimentos e travestidas para parecerem preditivas. Mas isso não afeta em nada a profecia de Isaías. Liberais desesperados que fazem de tudo para negar o sobrenatural até tentaram criar uma teoria sobre a existência de dois Isaías para explicar seu sucesso preditivo (que é chamada de Teoria do Deutero-Isaías). Mas nem mesmo essa tese pode acomodar Isaías 53, já que os eventos que se cumpriram ocorreram cerca de 700 anos mais tarde. Em vão, alguns críticos liberais afirmaram que Isaías 53 deve ter sido escrito depois de Cristo. Mas, depois da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto – com cópias exatas da profecias de Isaías que remontam a séculos antes de Cristo –, foi destruída completamente essa alegação. O cumprimento das profecias bíblicas se destaca como um dos fenômenos mais naturalmente inexplicáveis que existem. Portanto, permanece como uma das maiores evidências para o sobrenatural e a Autoridade divina, não só para intervir nos assuntos humanos, mas para anunciar tais intervenções antes que Ele as cumpra.

A solução para o problema que estamos analisando agora pode estar numa palavra grega no texto que tem uma nuance especial e que lhe dá um significado que não é notado em muitos idiomas, como o inglês e o português. Em outros termos, Jesus não está dizendo que essa geração vai ver tudo o que vai ocorrer nos últimos dias, em sua conclusão, mas que eles irão testemunhar o seu início, aquilo que vai culminar nisso tudo. Apresentamos, a seguir, uma explicação técnica do texto em questão. 

No texto original em grego, foi usado o tempo verbal aoristo, no vocábulo ginomai (γίνομαι), traduzido por “aconteça”. O aoristo designa somente a ação, sem referência à sua duração (abstração da duração). Exprime a ação efetuada, pura e simples, como um “ponto”: é um tempo indefinido que afirma só o fato, sem especificar a sua duração. Quando o aoristo descreve uma ação ou um evento, pode acentuar uma de três possibilidades: incipiente ou ingressiva, constatativa ou durativa ou culminativa (ou télica). 

Tomemos como exemplo a descrição de uma seta que é arremessada em direção a um alvo: o uso do aoristo em uma sentença assim poderia designar 1) essa seta em seu trajeto, cortando o ar por efeito do arremesso; 2) que a seta “voou” em certa direção; 3) a seta atingindo o seu alvo. Esses aspectos do aoristo indefinido podem lançar alguma luz sobre a frase enigmática do Sermão da Montanha: “...não passará esta geração antes que tudo isso aconteça (ginomai[3])”. 

A dificuldade reside no fato de Jesus já descreveu o fim do mundo nos v. 24ss em termos vívidos do Sol e da Lua não darem a sua luz , as estrelas “caírem do céu” e os corpos celestes sendo abalados. A menos que a expressão “esta geração” seja estendida para incluir toda a época a partir da primeira até a segunda vinda de Jesus (opção improvável), o aoristo ginomai pode fornecer uma pista. Se entendermos o verbo como ingressivo e traduzi-lo a partir da perspectiva da ação iniciada, podemos traduzir: “...esta geração não passará até que todas essas coisas comecem a acontecer”.

Tal nuance da mesma forma de aoristo também pode ser vista nas palavras do Arcanjo Gabriel a Zacarias (Lc 1,20): “Ficarás mudo e não poderás falar até ao dia em que essas coisas venham a se realizar”. Não só o nascimento, mas o ministério de João Batista foi profetizado por Gabriel nos vv. 13-17, e Zacarias recupera sua voz logo que escreve o nome de seu filho recém-nascido em uma tabuleta (Lc 1,62-64 ). Assim, o v. 20 deve ser traduzido como “Ficarás em silêncio e não poderás falar até o dia em que essas coisas começarem a se realizar”. É a mesma construção.

Deve-se, então, prestar muita atenção ao significado contextual da unidade de sentido maior, e cabe se buscar a interpretação do aoristo como a perícope ou o parágrafo poderá sugerir. 

Aí está: o que acabamos de apresentar é uma solução (ao menos parcial) possível e uma maneira de tentar conciliar o Texto sagrado àquilo que sabemos ser a realidade objetiva dos fatos – isto é, evidentemente não veio o fim dos tempos nem a Segunda Vinda ainda durante aquela geração – porque cremos que o mesmo Texto é infalível e, se admitirmos que há nele uma falha assim gritante, então a nossa Fé estaria em risco.

Por outro lado, não podemos abrir mão de reconhecer, se é que pretendemos manter a nossa honestidade intelectual, que uma Fé madura requer a admissão de outras possibilidades menos ortodoxas. Realmente admitimos que a solução apresentada é apenas parcial, porque restam as confirmações das epístolas que confirmam que havia mesmo essa expectativa de que a Parusia viria ainda nos tempos dessa primeira geração de cristãos, como as de São Paulo e São João. De fato, todos os estudos mais aprofundados e o conhecimento do contexto geral desse período local e histórico indicam que não é razoável pretender negar que essa espera da volta do Senhor para muito breve pairava no ar. Certas afirmações bíblicas que hoje, pela pregação da Igreja em todos esses últimos séculos, e até pela força do hábito, interpretamos como profecias para um tempo futuro indefinido ou muito distante da época em que foram proferidas, na época eram entendidas como para dali há pouquíssimo tempo. Como é que se resolve o problema, então?

Como dito, abandonando certos conceitos infantis os quais nos sugere a interpretação fundamentalista da Fé e partindo para uma visão teológica mais abrangente e adulta; sem se deixar de lado, claro, a fidelidade à Tradição. É o que veremos em nosso próximo módulo.


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[1] O nome do primeiro dia da semana do nosso calendário é bastante semelhante em todos os idiomas de origem latina: é domingo em português e em espanhol; domenica no italiano, duminică em romeno, diumenge em catalão. A origem comum de todos esses termos é o adjetivo latino Dominicus, que significa algo que é próprio de quem é senhor ou, mais simplesmente, “do senhor”. Por sua vez, o Dominicus vem de Dominus, que significa Senhor. O nome completo do primeiro dia da semana, em latim eclesiástico, é Dies Dominicus, isto é, “Dia Senhorial”: o “Dia do Senhor”.

A referência, por óbvio, é a Jesus Cristo, Nosso Senhor, e o domingo passou a lhe ser dedicado por ter sido o dia de sua Ressurreição. Com o uso no correr do tempo, a expressão original (Dia Dominico) tornou-se “dia domingo” e, depois, ficou resumida ao abreviado “domingo”. A palavra também perdeu o seu sentido adjetivo original e virou substantivo, referindo-se apenas ao primeiro dia da semana. Sua origem, no entanto, deixa claro o seu significado: o domingo é, literalmente, o Dia do Senhor (Ref.: Carta Apostólica DIES DOMINI).

[2] “O reconhecimento do Senhor Jesus na ‘fração do Pão’ (At 2,42) é indício da relação que existe originariamente entre a fé na Ressurreição e a Ceia Eucarística com a Presença de Jesus no meio dos seus. (...) As duas coisas afirmaram-se ao mesmo tempo na refeição da comunidade; as duas formam, por assim dizer, uma mesma fé em Cristo sempre vivo”. (Loisy, Alfred. Les Actes des Apôtres, Émile Nourry: Paris, 1920, p. 217, apud DANIEL-ROPS [1988, p.24]).

[3] Ginomai pode ser corretamente traduzido por uma ampla gama de flexões de variados verbos no português, e ainda sugerir diferentes sentidos numa sentença, a saber: “tornar-se”; “vir a existir”, “começar a ser”, “receber o ser”; “acontecer”, “surgir”, “aparecer (na história)”, “subir ao palco”; “ser feito”; “acabado/terminado”; “a ser realizado”. Pode se referir a homens “aparecendo” em público; a uma peça “forjada”, etc.

Módulo 12: Bíblia 1 | Os manuscritos do Mar Morto e o cânon de Jâmnia


Continuaremos com os nossos estudos de introdução à Septuaginta (LXX), a primeira versão grega do Antigo Testamento que significa “Tradução dos Setenta Homens” ou ainda “Interpretatio secundum (juxta) Septuaginta Seniores” (Tradução dos Setenta Anciãos) e às razões de sua grande importância no conhecimento das Sagradas Escrituras. Veremos neste capítulo ou módulo sobre a importância da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e as origens da atual Bíblia hebraica com o Cânon de Jâmnia e suas implicações para a Fé cristã.


A importância das descobertas do Mar Morto

Praticamente todos aqueles que se interessam pelo estudo das Sagradas Escrituras já deverá ter ouvido falar, ao menos alguma vez, sobre a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto. Ocorre que partes da LXX, anteriores ao ano 70 d.C., foram encontradas na Judeia entre esses inestimáveis manuscritos, descobertos em Qumran entre o final dos anos 1940 e correr dos 1950[1]. Entre esses fragmentos, constam trechos de Livros deuterocanônicos do AT, e há uma cópia do Eclesiástico, em hebraico, encontrada nas ruínas de Massada, datada como do início do primeiro século a.C. 

            Tais evidências comprovam acima de qualquer dúvida razoável que os Livros deuterocanônicos eram conhecidos e usados pelos judeus da Palestina. Ante tantas provas avassaladoras, resta apenas uma mui débil tentativa de se alegar que tais textos teriam sido utilizados apenas por certos grupos ou seitas menores, o que se configura absurdo, pois, como já demonstramos, os Apóstolos e o próprio Cristo os citaram. Como se não bastasse, tal modo de pensar é frontalmente contrário ao que diz a pesquisa especializada mais abalizada: 
 

Tanto no judaísmo moderno quanto no cristianismo, uma ‘seita’ é, geralmente, um ramo de um tronco religioso maior e é frequentemente vista como excêntrica ou desviada nas suas crenças. Mas os pesquisadores e leigos deveriam recordar que durante todo o período de existência de Qumran, os fariseus e os saduceus eram ‘seitas’, assim como eram os essênios. Foi apenas a partir do século II d. C. que passou a se formar um tipo de judaísmo ‘aquele dos fariseus, dos rabis’ que que veio a se tornar padrão para o povo judeu como um todo. Tais matérias são de menor importância se comparadas com os manuscritos bíblicos. Primeiro, porque todos os pesquisadores concordam que nenhum dos textos bíblicos (tais como Gênesis ou Isaías) foi composto em Qumran; ao contrário, todos eles se originaram antes do período de Qumran. Também é aceito que muitos ou a maioria desses manuscritos foram trazidos de fora para Qumran e, depois, aí reproduzidos. Isto significa que o valor da maioria dos manuscritos bíblicos enganam, não em estabelecer precisamente onde foram escritos ou copiados, mas especificamente quanto ao estudo das formas textuais que encerram[2].

 

            Podemos afirmar com toda a certeza, portanto, que a LXX era conhecida pelos judeus  alexandrinos e palestinos, e por Jesus Cristo e seus Apóstolos. O tempo levaria as sinagogas e a Igreja a escolherem alguns livros da LXX como canônicos e a rejeitarem outros. 
 

            Aproximadamente no ano 90 d.C., esse mesmo grupo de rabinos definiu uma lista dos livros que, segundo eles entendiam, deveriam ser aqueles considerados sagrados pelos judeus. Nasceu assim o chamado Cânon de Jâmnia, que por sua vez deu origem à atual Bíblia Hebraica. 


O Cânon de Jâmnia

Nos tempos de Nero, imperador romano de trevosa memória, desencadeou-se a primeira revolta aberta dos judeus da Palestina contra o domínio de Roma (66-70 d.C.).Na primavera de 70, Tito sitiou Jerusalém: a cidade inteira foi saqueada e arrasada. O Templo foi destruído no dia 10 do mês de agosto desse mesmo ano. Os fariseus de Jerusalém[3] transferiram-se então para a cidade de Jâmnia. Lá, formaram uma próspera escola rabínica.

            O Cânon de Jâmnia excluiu os sete livros deuterocanônicos do AT e os acréscimos de Daniel e Ester do rol de suas Escrituras sagradas, muito provavelmente movidos inclusive pela intenção de dissociar o seu culto religioso daquele dos cristãos.

            Alguns exegetas protestantes utilizam-se do Cânon de Jâmnia como álibi para afirmar a tese da existência de um cânon bíblico muito anterior, apenas ratificado em Jâmnia, definido pela tradição  judaica. Segundo essa tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras Sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral (‘Escrituras’) indicaria que tinham em mente uma quantidade precisa de livros incluídos sob tal título. Apresentam como álibi para essa teoria todos os registros bíblicos que mencionam genericamente “as Escrituras”. Um exemplo está no trecho em que São Lucas Evangelista descreve o diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: “...começando por Moisés, e discorrendo por todos os Profetas, explicava-lhes o que d’Ele se encontrava dito em todas as Escrituras” (Lc 24,27). A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que, já no tempo de Cristo, estava fixada uma lista de livros canônicos.

            Outro caso semelhante é a passagem em que Nosso Senhor manda os fariseus, legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que n’Ele se cumpriram todas as profecias messiânicas (Jo 5,39)[4]. Ao utilizar-se da expressão “Escrituras”, Jesus estaria se referindo a um conjunto de livros já reconhecido naquele tempo. 

            Ainda outro argumento semelhante procura fundamentação na expressão “Moisés e os Profetas” ou “A Lei e os Profetas” citada nos Evangelhos, como em Lc 24,44, onde Jesus, ao aparecer aos  Apóstolos e discípulos, diz: “(...)era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. Haveria aqui uma evidência de que esse suposto cânon judeu estaria já organizado há tempos. Assim, tenta-se defender a existência de um cânon bíblico preexistente, organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos.

            Aí estão, mais uma vez, argumentos frágeis, para dizer o mínimo; pois, em todas essas referências, o Cristo tenta demonstrar que é n’Ele que se cumprem as profecias messiânicas. E onde estão essas profecias? Ora, estão justamente nos Livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Assim, é bastante claro que Jesus esteja se referindo simplesmente aos Livros que geralmente se enquadravam nessas categorias, assim como também qualquer um que leia os textos será capaz de notar que o Senhor em momento algum faz alusão a um cânon sagrado definitivo supostamente reconhecido e observado no seu tempo.

            O simples ato de se dizer “as Escrituras” ou falar em “Lei e os Profetas”, só por alguém que esteja muito predeterminado a crer no argumento protestante poderia ser entendido como sinônimo de se afirmar que todos esses Livros estavam já definitivamente estruturados, reunidos e organizados em um único conjunto definitivamente canonizado.

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[1] Algumas dessas partes foram encontradas na denominada ‘Caverna 4’ (119 LXX Lev.; 120 pap LXX Lev.; 121 LXX Num.; 122 LXX Deut.), mais um texto não identificado da LXX grega encontrado na ‘Caverna 9’ (Q9), e um fragmento de papiro, também em grego, encontrado na ‘Caverna 7’ (LXX Exod.). Realmente a ‘Caverna 7’ trouxe ainda muitos pequenos fragmentos da LXX, cujas identificações até recentemente permaneciam sem uma classificação definitiva.

Módulo 12: Dogmática 1 | Luz


“Eu Sou a Luz do Mundo” (Jo 8,12)


A Luz de Deus é o Verbo de Deus, e Ele veio ao mundo para iluminar os homens. O quarto Evangelho é chamado o Evangelho da Luz, por ser este no qual disse Deus humanado: “Eu Sou a Luz do mundo”. Se as verdades da Fé são para nós obscuras, deve-se isso ao excessivo esplendor que nos deslumbra e ofusca o intelecto. Ofusca, porém não cega. Podemos perceber qualquer claridade, ou, como diz São Paulo, vislumbrar imperfeitamente, como que por espelho e em enigma, o que na Glória veremos face a Face.

    Conhecimento obscuro, sim, nesse sentido, mas a Fé não é conhecimento vazio; por meio dela apreendemos verdadeiramente seu próprio Objeto, embora como que às escuras. Como poderíamos servir a Deus sobre a Terra, e assim nos preparar a contemplá-lo na Glória, se não o conhecêssemos? Falta-nos sempre aquela evidência visível que tanto desejáramos, contudo, resta uma apreensão intelectual, ainda que imperfeitíssima.

    Não há, pois, contradição em qualificar também a fé como uma espécie de “luz que ilumina o espírito”, após havê-la caracterizado, antes, como “obscura”. A Fé ao mesmo tempo é uma e outra coisa. O mesmo Apóstolo Paulo, que aos Coríntios usou o termo “enigma”, escrevendo-lhes novamente e igualmente inspirado pelo Céu, em uma outra ocasião, assim se expressou:


Deus que disse: ‘Das trevas brilhe a luz’, é também Aquele que fez brilhar a sua luz em nossos corações, para que irradiássemos o conhecimento do esplendor divino, que se reflete na Face de Cristo.(2 Cor 4,6)


    Igualmente, o primeiro Papa faz ressaltar esse “claro-escuro” da Fé:


Assim demos ainda maior crédito à palavra dos Profetas, à qual fazeis bem em atender, como a uma lâmpada que brilha em um lugar tenebroso, até que desponte o dia e a estrela da manhã se levante em vossos corações.
(2Pd 1, 19)


    Essa Luz sobrenatural se irradia tanto sobre as razões de crer como sobre o objeto do que se crê. Sobre as razões, amparando, aguçando a luz natural do espírito, fazendo-lhe ver que deve crer; mostrando que a Fé é, a um só tempo, estrita obrigação e a maior das felicidades; inclinando a inteligência a aferrar- se à Palavra revelada e a fugir do que a contraria. Sobre o objeto também se irradia, desvendando algo de sua inteligibilidade. Por mais que excedam o entendimento, os mistérios não contradizem a razão. Ao recitarmos o Credo, não repetimos palavras sem sentido; muito ao contrário, comungamos a Luz incriada, o conhecimento que Deus dá de Si próprio.

    Tal é o claro ensinamento de Jesus em São João. O Mestre – a um só tempo – diz da transcendência e inacessibilidade do Mistério – “Não que alguém tenha visto o Pai, pois só Aquele que vem de Deus, Esse é que viu o Pai” (Jo 6,46; cf. 1,18) – e a nossa participação neste – “Tudo quanto ouvi de meu Pai, vos tenho dito” (Jo 15,15).

    Cristo nos descobre, pois, os segredos de Deus e desde já — por imperfeito que seja o nosso saber — por assim dizer, pensamos como Deus pensa, conhecemos como Ele conhece e, assim, vivemos da Vida de Deus. Em vão procuraríamos no Evangelho o mais tênue indício da Fé tal a concebem um Kierkegaard ou um Karl Barth: “puro salto no absurdo”. Ao contrário, a Fé é um salto dentro da puríssima e mais ofuscante Luz.


Aquele que crê em Mim crê não em Mim, mas n’Aquele que me enviou; e aquele que me vê, vê Aquele que me enviou. Eu vim como Luz ao mundo; assim, todo aquele que crer em Mim não ficará nas trevas.
(Jo 12, 44-46)


    Eco fiel de seu Mestre, Pedro exalta a luminosidade da Fé:


Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes d’Aquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa Luz.
(1 Ped 2,9)


    São Paulo igualmente concebe a Fé como iluminação. É muito característica a comparação que institui entre o dom de profecia e a glossolalia (entendia-se por esta um carisma pelo qual certos fiéis, durante reuniões do culto, prorrompiam em frases e exclamações incompreensíveis ou proferidas em línguas desconhecidas). O Apóstolo coloca essa glossolalia muito abaixo da profecia, justamente porque a quem fala em línguas estranhas “ninguém o entende”, “fala ao ar”, enquanto que o profeta “fala aos homens para a edificação, exortação e consolação”. Prossegue, insistindo sobre a ininteligibilidade e consequente esterilidade da glossolalia, e arremata:


...prefiro falar na assembleia cinco palavras que compreendo, para instruir também os outros, a falar dez mil palavras em línguas.

(1Cor 14,2-20)


    Acima da razão, a Fé jamais é contra a razão. Muito ao contrário, sobreleva-a, completa-a, exalta-a, longe de destruí-la. A luminosidade da Fé cristã, sentem-na talvez mais vivamente do que nós — nascidos e crescidos na Religião — os que se converteram da incredulidade. Estes percebem que, por ouvirem a voz de Cristo, passaram da morte à vida (Jo 5,24). Veem que às grandes questões que os atormentavam — o que somos, de onde viemos, para onde vamos? — a ciência e a filosofia lhes respondiam por frágeis conjecturas, que não os satisfaziam. Somente a Fé é capaz de projetar sobre esses problemas torrentes de luz. Doravante não mais se contentarão com hipóteses movediças, mas exigirão certezas. Sabem o que devem pensar, porque sabem o que Deus pensa.

    Sabem que o mundo não é obra do acaso, também nem mesmo de um distante Primeiro Princípio, mas de um Deus que é Amor, que ama a cada um de nós pessoalmente. Sabem que a existência não é como um intransponível deserto, um enigma indecifrável, um vazio ou uma farsa absurda, mas é o caminho para nosso verdadeiro destino: viver em Deus-Amor, contemplando-o e amando-o. Sabem que a morte não é o mergulho dentro do nada, mas o derradeiro desfiladeiro que nos separa da Casa do Pai. Sabem que sobre a Terra não lutam e sofrem sozinhos, mas têm por companheiro o próprio Deus que, por ser Amor, chegou ao pont0 de encarnar-se e entregar a vida em Sacrifício, por cada um de nós.

    Desdobram-se, assim, as grandes verdades cristãs, por certo misteriosas, e neste sentido obscuras; mas também luminosas. São verdades cuja percepção muda, no paladar da alma, o gosto da vida. “Esse Jesus vós o amais, sem o terdes visto; credes n’Ele, sem o verdes ainda, e isso é para vós a fonte de uma alegria inefável e gloriosa” (1Pd 1,8). Quando sincera, a Fé opera uma verdadeira inversão de valores. 

    Quem vive na solene expectativa do além-túmulo entende a gravidade do pecado e a beleza do convívio com Cristo: a existência se reveste uma feição inteiramente nova. Vemos todas as coisas como que “pelos olhos de Deus”, porque os olhos da Fé são olhos divinizados. As realidades sensíveis, os prazeres e seduções do mundo, outrora fascinantes, descolorem-se, perdem a atração; o invisível torna-se mais próximo do que o visível.

    A virtude purificadora da fé impede a escravização da criatura, o embotamento ante o espiritual. Por mais que a fraqueza ou a covardia o façam desfalecer, um verdadeiro crente jamais se rebaixará a certas desonras, como à idolatria da matéria. Bem sabem disso os ditadores de regimes materialistas e totalitários, que procuram, como condição primeira para impor o seu jugo, apagar a Fé, especialmente na consciência dos jovens.

    O espírito de Fé — que é a disposição habitual de fazer penetrar a Fé nos mínimos detalhes da existência presente — confere como que um gosto de eternidade aos atos mais simples e corriqueiros.

    Deriva esse espírito de Fé do contato vivo com a Pessoa de Cristo. Dando ao fiel a sua Verdade, Cristo dá-se a Si mesmo: “Cristo habite pela Fé em vossos corações” (Ef 3,17). Muito mais do que uma filosofia religiosa — assimilação e prática de alguma ideologia — a Fé é a Luz do Verbo que desce da Eternidade para que a mente dela beba e se encha de Verdade divina. Não cremos em um ser distante e inacessível, mas em uma Pessoa que é nosso amor e nosso tudo, que está mais presente a nós do que nós mesmos, e nos apascenta o espírito com a sua Verdade.

    À medida em que vamos nos transformando nessa Verdade, pela meditação assídua e o amor generoso, Cristo mais abundantemente vai “iluminando os olhos de nosso coração” (Ef 1,18) pelo seu Espírito. É promessa sua:


Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco. É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece, mas vós o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, Ele vos ensinará toda a verdade...
(Jo 14,16; 16,13)


    Pelo dom de “Inteligência”, o Espírito nos faz penetrar intimamente os mistérios da Fé; torna-os suaves de crer, faz jorrar deles luz resplandecente:


...enriquecidos de uma plenitude de inteligência, para conhecerem o Mistério de Deus, isto é, Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da Sabedoria e da Ciência.
(Col 2,2-3)


Já não é mais uma apreensão abstrata, algum fruto da meditação teológica, mas a assimilação íntima, quase intuitiva, fruto da Graça mística, e que aproxima, quanto é possível na presente vida, da visão beatífica. Aos olhos dos Santos, os enunciados da Fé tornam-se véus translúcidos que coam a Luz da eternidade.

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