
Temos visto a importância da Septuaginta (LXX) para a adesão da Bíblia em sua forma completa pela Igreja Católica, assim como as contestações dos protestantes que adotam a versão definida pelos judeus para judeus (Cânon de Jâmnia). Prosseguiremos agora com outras alegações dos adversários da Fé católica ainda quanto ao cânon bíblico.
Certos grupos procuram apresentar como “prova” de um suposto cânon muito antigo (que teria sido apenas confirmado em Jâmnia) os documentos de Flávio Josefo (retratado na imagem que ilustra este módulo) e Áquila (este criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas que leva o seu nome).
Quanto a Áquila, seu testemunho é posterior ao Cânon de Jâmnia; apenas por isso, claro, não é possível tomá-lo como prova. Resta Josefo: este poderia representar um argumento um pouco mais respeitável; por isso mesmo, reproduzimos abaixo o texto de sua autoria que é citado nesse debate, extraído de seu escrito intitulado “Contra Apião (ou Apion)’’:
É, pois, natural ou, melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois que contenham os registros de toda história e que com toda justiça sejam dignos de confiança. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos.
Desde a morte de Moisés até Artajerjes[1], sucessor de Jerjes [Xerxes] como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés, foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros; os quatro restantes contém hinos a Deus e conselhos morais aos homens. Também desde Artajerjes até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia [mais] uma sucessão rigorosa de profetas. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas.[2]
Sim, vemos aí a menção a uma relação bem definida, e muitos se quedam mudos diante deste argumento. O fato, porém, é que uma investigação razoavelmente aprofundada vai demonstrar que esse testemunho simplesmente não corresponde à verdade histórica dos fatos. Vejamos.
Cite-se de passagem, logo de início, que não é possível precisar se esse testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e o seu escrito. De imediato, pois, todo argumento baseado nesse documento se torna inconclusivo[3].
Essa questão importantíssima quanto à data, porém, não é o problema mais importante dessa tese. Ocorre que a divisão de Josefo, de 22 Livros, é diferente da divisão tripartida posterior, especialmente em relação aos conteúdos citados no tratado Baba Batra[4]. Assim, temos que a lista de Josefo de fato não se impôs no judaísmo, o que não poderia ocorrer se houvesse essa autoridade que ele tentava lhe atribuir. Ora ainda na época do próprio Josefo o cânon de de 24 livros era mais popular.
Também é preciso considerar que a passagem da Carta contra Apião é um escrito apologético, produzido com o fim de contrariar não só o gramático egípcio Apião como também a todos os que negavam a respeitável antiguidade dos judeus e da sua literatura. Josefo frequentemente usou de grandes exageros em seus escritos, com o objetivo de elaborar suas defesas e provar seus pontos de vista em defesa do judaísmo: trata-se, nesse sentido, de um verdadeiro propagandista contra os intelectuais pagãos do seu tempo. Quando ele afirma que “ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada” do conjunto de livros sagrados que cita, é impraticável levá-lo a sério, pois é quase impossível considerar que ele mesmo, um homem culto, “não estivesse a par das múltiplas discrepâncias textuais comuns às versões hebraica, grega e aramaica das Escrituras judaicas em circulação no século I”[5].
Mais do que isso, o prólogo da tradução grega do Livro do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), escrito por volta de 130 a.C. e portanto bem anterior ao testemunho de Josefo, realmente o contradiz frontalmente. Lemos aí:
Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes. (...) Foi assim que, após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos pelos nossos antepassados....
Enquanto que o testemunho de Josefo parece procurar restringir a definição de um conjunto de Livros sagrados ao tempo de Esdras, “porque [depois de ‘Artajerjes’/Artaxerxes, isto é, depois de Esdras] não houve uma sucessão rigorosa de Profetas”, o Eclesiástico é mais amplo e fiel à História ao afirmar: “...por outros escritores que os sucederam [os Profetas], recebemos [também] inúmeros ensinamentos (...)”.
O testemunho do Eclesiástico refere-se diretamente a livros posteriores ao tempo dos Profetas. Veja-se o que pesquisador protestante Leonard Rost tem a dizer sobre isso:
Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros que parecem ter gozado de bastante estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I d.C.[6]
É digno de nota também que, em Josefo mesmo, o trecho principal está aberto para interpretações diversas: “Havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”. Pode-se entender daí — e alguns efetivamente assim o entendem — que Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume, com os livros escritos antes deste período (protocanônicos), pois tal coisa se configuraria em um acréscimo aos primeiros. Está dizendo apenas que nada foi alterado nos textos presentes nesses livros, nada mais e nada menos. Josefo não se refere à adição ou subtração de livros a outros conjuntos de livros preestabelecidos.
Encerrando afinal o assunto sobre a teoria do cânon preexistente, vejamos em resumo algumas de suas principais inconsistências:
1. Se o suposto cânon antigo correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que então era comumente usada a LXX, com o seu catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e de Massada?;
2. Se esse suposto cânon preexistente fosse idêntico ao novo cânon definido em Jâmnia, então não teria sido necessária essa nova definição, como num evento que procedeu a uma nova escolha de Livros, afinal, aquele mesmo conjunto de textos já vinha sendo observado desde tempos muito antigos. Bastaria reafirmá-lo, sem a criação e a nomeação de um novo cânon;
3. Por outro lado, se esse suposto cânon correspondesse aos livros da LXX, então não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; sendo assim, não teria sido possível estabelecer-se o Cânon de Jâmnia;
4. Os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia, e até hoje guardam como sagrados os livros da LXX. Se realmente tal suposto cânon bíblico existisse e estivesse de tal forma estabelecido, não haveria nenhuma disputa entre os judeus sobre esse assunto; todos adotariam naturalmente o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.
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[1] Artaxerxes na tradução mais comum – refere-se aos tempos do Profeta Esdras, portanto.
[2] JOSEFO (2006, pp. 21-22).
[3] É geralmente aceito que ‘Contra Apion’ tenha sido concluído em torno do ano 94 ou posteriormente; já o Cânon de Jâmnia é comumente datado como sendo do ano 90. Nenhuma dessas datas, porém, é conclusiva; sabemos apenas que ambos os eventos localizam-se nos últimos anos do século I d.C. Com efeito, não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou não ao Cânon de Jâmnia; uma incerteza que compromete completamente seu testemunho. De fato, avançando além, historiadores veem indícios de que ele tenha sido influenciado pelo Cânon de Jâmnia.
[4] Tratado do Talmud que integra a lei oral do judaísmo. Originalmente, junto com Bava Kamma e Bava Metzia, formou um único tratado chamado Nezikin.
[5] Cf. MCDONALD (2014, cap. 3).
[6] ROST (1980, p.19)