Módulo 12: Dogmática 1 | Luz


“Eu Sou a Luz do Mundo” (Jo 8,12)


A Luz de Deus é o Verbo de Deus, e Ele veio ao mundo para iluminar os homens. O quarto Evangelho é chamado o Evangelho da Luz, por ser este no qual disse Deus humanado: “Eu Sou a Luz do mundo”. Se as verdades da Fé são para nós obscuras, deve-se isso ao excessivo esplendor que nos deslumbra e ofusca o intelecto. Ofusca, porém não cega. Podemos perceber qualquer claridade, ou, como diz São Paulo, vislumbrar imperfeitamente, como que por espelho e em enigma, o que na Glória veremos face a Face.

    Conhecimento obscuro, sim, nesse sentido, mas a Fé não é conhecimento vazio; por meio dela apreendemos verdadeiramente seu próprio Objeto, embora como que às escuras. Como poderíamos servir a Deus sobre a Terra, e assim nos preparar a contemplá-lo na Glória, se não o conhecêssemos? Falta-nos sempre aquela evidência visível que tanto desejáramos, contudo, resta uma apreensão intelectual, ainda que imperfeitíssima.

    Não há, pois, contradição em qualificar também a fé como uma espécie de “luz que ilumina o espírito”, após havê-la caracterizado, antes, como “obscura”. A Fé ao mesmo tempo é uma e outra coisa. O mesmo Apóstolo Paulo, que aos Coríntios usou o termo “enigma”, escrevendo-lhes novamente e igualmente inspirado pelo Céu, em uma outra ocasião, assim se expressou:


Deus que disse: ‘Das trevas brilhe a luz’, é também Aquele que fez brilhar a sua luz em nossos corações, para que irradiássemos o conhecimento do esplendor divino, que se reflete na Face de Cristo.(2 Cor 4,6)


    Igualmente, o primeiro Papa faz ressaltar esse “claro-escuro” da Fé:


Assim demos ainda maior crédito à palavra dos Profetas, à qual fazeis bem em atender, como a uma lâmpada que brilha em um lugar tenebroso, até que desponte o dia e a estrela da manhã se levante em vossos corações.
(2Pd 1, 19)


    Essa Luz sobrenatural se irradia tanto sobre as razões de crer como sobre o objeto do que se crê. Sobre as razões, amparando, aguçando a luz natural do espírito, fazendo-lhe ver que deve crer; mostrando que a Fé é, a um só tempo, estrita obrigação e a maior das felicidades; inclinando a inteligência a aferrar- se à Palavra revelada e a fugir do que a contraria. Sobre o objeto também se irradia, desvendando algo de sua inteligibilidade. Por mais que excedam o entendimento, os mistérios não contradizem a razão. Ao recitarmos o Credo, não repetimos palavras sem sentido; muito ao contrário, comungamos a Luz incriada, o conhecimento que Deus dá de Si próprio.

    Tal é o claro ensinamento de Jesus em São João. O Mestre – a um só tempo – diz da transcendência e inacessibilidade do Mistério – “Não que alguém tenha visto o Pai, pois só Aquele que vem de Deus, Esse é que viu o Pai” (Jo 6,46; cf. 1,18) – e a nossa participação neste – “Tudo quanto ouvi de meu Pai, vos tenho dito” (Jo 15,15).

    Cristo nos descobre, pois, os segredos de Deus e desde já — por imperfeito que seja o nosso saber — por assim dizer, pensamos como Deus pensa, conhecemos como Ele conhece e, assim, vivemos da Vida de Deus. Em vão procuraríamos no Evangelho o mais tênue indício da Fé tal a concebem um Kierkegaard ou um Karl Barth: “puro salto no absurdo”. Ao contrário, a Fé é um salto dentro da puríssima e mais ofuscante Luz.


Aquele que crê em Mim crê não em Mim, mas n’Aquele que me enviou; e aquele que me vê, vê Aquele que me enviou. Eu vim como Luz ao mundo; assim, todo aquele que crer em Mim não ficará nas trevas.
(Jo 12, 44-46)


    Eco fiel de seu Mestre, Pedro exalta a luminosidade da Fé:


Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes d’Aquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa Luz.
(1 Ped 2,9)


    São Paulo igualmente concebe a Fé como iluminação. É muito característica a comparação que institui entre o dom de profecia e a glossolalia (entendia-se por esta um carisma pelo qual certos fiéis, durante reuniões do culto, prorrompiam em frases e exclamações incompreensíveis ou proferidas em línguas desconhecidas). O Apóstolo coloca essa glossolalia muito abaixo da profecia, justamente porque a quem fala em línguas estranhas “ninguém o entende”, “fala ao ar”, enquanto que o profeta “fala aos homens para a edificação, exortação e consolação”. Prossegue, insistindo sobre a ininteligibilidade e consequente esterilidade da glossolalia, e arremata:


...prefiro falar na assembleia cinco palavras que compreendo, para instruir também os outros, a falar dez mil palavras em línguas.

(1Cor 14,2-20)


    Acima da razão, a Fé jamais é contra a razão. Muito ao contrário, sobreleva-a, completa-a, exalta-a, longe de destruí-la. A luminosidade da Fé cristã, sentem-na talvez mais vivamente do que nós — nascidos e crescidos na Religião — os que se converteram da incredulidade. Estes percebem que, por ouvirem a voz de Cristo, passaram da morte à vida (Jo 5,24). Veem que às grandes questões que os atormentavam — o que somos, de onde viemos, para onde vamos? — a ciência e a filosofia lhes respondiam por frágeis conjecturas, que não os satisfaziam. Somente a Fé é capaz de projetar sobre esses problemas torrentes de luz. Doravante não mais se contentarão com hipóteses movediças, mas exigirão certezas. Sabem o que devem pensar, porque sabem o que Deus pensa.

    Sabem que o mundo não é obra do acaso, também nem mesmo de um distante Primeiro Princípio, mas de um Deus que é Amor, que ama a cada um de nós pessoalmente. Sabem que a existência não é como um intransponível deserto, um enigma indecifrável, um vazio ou uma farsa absurda, mas é o caminho para nosso verdadeiro destino: viver em Deus-Amor, contemplando-o e amando-o. Sabem que a morte não é o mergulho dentro do nada, mas o derradeiro desfiladeiro que nos separa da Casa do Pai. Sabem que sobre a Terra não lutam e sofrem sozinhos, mas têm por companheiro o próprio Deus que, por ser Amor, chegou ao pont0 de encarnar-se e entregar a vida em Sacrifício, por cada um de nós.

    Desdobram-se, assim, as grandes verdades cristãs, por certo misteriosas, e neste sentido obscuras; mas também luminosas. São verdades cuja percepção muda, no paladar da alma, o gosto da vida. “Esse Jesus vós o amais, sem o terdes visto; credes n’Ele, sem o verdes ainda, e isso é para vós a fonte de uma alegria inefável e gloriosa” (1Pd 1,8). Quando sincera, a Fé opera uma verdadeira inversão de valores. 

    Quem vive na solene expectativa do além-túmulo entende a gravidade do pecado e a beleza do convívio com Cristo: a existência se reveste uma feição inteiramente nova. Vemos todas as coisas como que “pelos olhos de Deus”, porque os olhos da Fé são olhos divinizados. As realidades sensíveis, os prazeres e seduções do mundo, outrora fascinantes, descolorem-se, perdem a atração; o invisível torna-se mais próximo do que o visível.

    A virtude purificadora da fé impede a escravização da criatura, o embotamento ante o espiritual. Por mais que a fraqueza ou a covardia o façam desfalecer, um verdadeiro crente jamais se rebaixará a certas desonras, como à idolatria da matéria. Bem sabem disso os ditadores de regimes materialistas e totalitários, que procuram, como condição primeira para impor o seu jugo, apagar a Fé, especialmente na consciência dos jovens.

    O espírito de Fé — que é a disposição habitual de fazer penetrar a Fé nos mínimos detalhes da existência presente — confere como que um gosto de eternidade aos atos mais simples e corriqueiros.

    Deriva esse espírito de Fé do contato vivo com a Pessoa de Cristo. Dando ao fiel a sua Verdade, Cristo dá-se a Si mesmo: “Cristo habite pela Fé em vossos corações” (Ef 3,17). Muito mais do que uma filosofia religiosa — assimilação e prática de alguma ideologia — a Fé é a Luz do Verbo que desce da Eternidade para que a mente dela beba e se encha de Verdade divina. Não cremos em um ser distante e inacessível, mas em uma Pessoa que é nosso amor e nosso tudo, que está mais presente a nós do que nós mesmos, e nos apascenta o espírito com a sua Verdade.

    À medida em que vamos nos transformando nessa Verdade, pela meditação assídua e o amor generoso, Cristo mais abundantemente vai “iluminando os olhos de nosso coração” (Ef 1,18) pelo seu Espírito. É promessa sua:


Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco. É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece, mas vós o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, Ele vos ensinará toda a verdade...
(Jo 14,16; 16,13)


    Pelo dom de “Inteligência”, o Espírito nos faz penetrar intimamente os mistérios da Fé; torna-os suaves de crer, faz jorrar deles luz resplandecente:


...enriquecidos de uma plenitude de inteligência, para conhecerem o Mistério de Deus, isto é, Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da Sabedoria e da Ciência.
(Col 2,2-3)


Já não é mais uma apreensão abstrata, algum fruto da meditação teológica, mas a assimilação íntima, quase intuitiva, fruto da Graça mística, e que aproxima, quanto é possível na presente vida, da visão beatífica. Aos olhos dos Santos, os enunciados da Fé tornam-se véus translúcidos que coam a Luz da eternidade.

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