
Os primeiros fiéis da Igreja reuniam-se aos domingos, o Dia do Senhor[1], partindo o pão com grande júbilo, sempre renovado, mantida a memória da Ressurreição do Salvador – que não era senão a antecipação de nossa própria entrada gloriosa para a vida eterna –, louvando a Deus e fazendo alternar o Maranatha (‘Vinde, Senhor’: voltai para nos resgatar deste mundo e desta existência de sofrimentos) com os hosanas que proclamam a sua certeza quanto à realização messiânica, unindo assim o passado da sua raça ao futuro da sua Fé, e sentindo com a alma vibrante que, ao consumirem o Pão da Vida, realizavam algo mais do que um simples rito de comemoração : uma participação na Vida divina.
Foi , sem dúvida, por meio da Comunhão Eucarística que estes primeiros fiéis ganharam consciência do que eram realmente[2], depois de terem recebido o sopro do Espírito Santo: mais do que uma assembleia de irmãos unidos pela mesma crença e em torno de uma Doutrina, mais do que uma reunião piedosa ou da escola de mais um mestre, eles eram uma sociedade de homens que viviam em Cristo e para Cristo, uma comunidade de Santos: a Igreja, o próprio Corpo Místico do mesmo Cristo e a sua continuidade histórica no mundo, até o seu retorno triunfal.
Viver e m Cristo – por Ele e para Ele –, esse é, com efeito , o desígnio único dessa Igreja criança. Sobre a organização logística da instituição Igreja, pouco podemos apreender com certeza, mas há uma realidade que se impõe ao nosso espírito quando consideramos as características daquela primeira comunidade de crentes em Jesus-Deus-Conosco: a de um esforço admirável para pôr em prática os preceitos do divino Mestre, e para levar a cabo, em cada alma convertida, a renovação completa que Ele exigia. O texto dos Atos está semeado de pequenas frases preciosas que revelam essa atmosfera: a alegria e a simplicidade de coração estão por toda a parte. “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32). Praticava-se verdadeiramente essa caridade doce e humilde, essa amizade de irmãos que São Pedro louvará em sua primeira Epístola. E a prova de que este quadro não foi idealizado ou romantizado, nem se trata de mera propaganda, mas que é verdadeiro, é que o Autor dos Atos não hesita em acentuar-lhe também as sombras, deixando ver que a natureza humana, não deixando de se fazer presente, introduzia aí mesmo traços de miséria e de pecado.
Mas o fato é que a Presença do Cristo ainda está ali, muito próxima. Dentre os que dirigem a comunidade, muitos o conheceram pessoalmente, viram-no, tocaram-no, seguraram suas mãos, tiveram sua dura cerviz destruída pela doçura do seu olhar, sua razão desafiada por sua sabedoria irrefutável. E essas pessoas evocam recordações pessoais e contam o que viram e ouviram quando Ele ensinava no lago de Tiberíades ou no meio da multidão, no átrio do Templo ou em peregrinação pelas suas cidades e povoados. Reúnem-se todos os pormenores, a memória ainda fresca e muito vívida quanto a tudo que Ele fez e ensinou, e assim se elabora uma catequese que dará origem à Tradição oral, depois transcrita, convertendo-se nos Evangelhos.
Nota-se sensivelmente a presença do Mestre no seio das almas; corno já acontecera com Maria Madalena e com os discípulos de Emaús, cada um experimenta essa Presença intimamente, com urna certeza que inquieta e com um ardor que incendeia.
Manifesta-se uma vida espiritual intensa. As crentes amigavelmente rivalizavam entre si no seu esforço pela santidade. Há uma abundância de graças por toda parte; multiplicam-se os prodígios, as curas, os milagres, a libertação, enfim, de uma vida miserável e sem sentido. De forma incessante e bem visível, realiza-se a promessa: “Quem crê em Mim, (...) do seu interior manarão rios de água viva” (Jo 7,38). E como a expectativa apocalíptica que jaz no coração de Israel se mistura secretamente com estas imagens, os discípulos perguntam-se se porventura o retorno glorioso do Messias não estará muito próximo e se Ele não voltará a aparecer sobre as nuvens do céu, numa manifestação assombrosa, já agora, talvez hoje, amanhã, quiçá na próxima semana. Durante a celebração da Missa talvez Ele venha! As “virgens prudentes” têm que vigiar o azeite de suas lâmpadas e prepararem as almas para a visita do Esposo! Vem logo o Senhor a cobrar a cada um os seus frutos, o rendimento dos talentos confiados a cada um.
Está próximo o fim destas coisas
Um aspecto importante e muitas vezes comentado desta primitiva era cristã deriva ao mesmo tempo do ideal de fraternidade e da convicção da proximidade da segunda vinda de Cristo, sendo que este último elemento têm importância especial no estudo da Teologia. Os Atos relatam que os fiéis punham tudo em comum, chegando até aqueles que possuíam campos ou casas os venderem para trazer o produto da venda aos pés dos Apóstolos, sendo que tudo se repartia, dando-se a cada um segundo a sua necessidade” (At 4 ,32-35 ). Esta parece ter se tornado a norma comum entre os cristãos, que seguiam à risca o conselho dado pelo Senhor ao jovem rico: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” (Lc 18, 22). Tal costume extraordinário não era exigido por lei ou preceito, mas essa prática comunitária era, sem dúvida, admirável. Nesse período, a fraternidade cristã era mais que uma palavra ou um ideal, mas uma realidade palpável que só podemos imaginar. Um dos fatores para que assim fosse, ainda que não o único, era justamente o sentimento profundo e generalizado de que viria, muito brevemente, a Parusia, o retorno do Senhor, tanto assim que, ao que parece, havia alguns que já não queriam trabalhar, esperando a consumação dos séculos que, segundo acreditavam, estava já às portas (2Ts 3,7-12).
De fato, o filósofo ateu Bertrand Russell alegava que Jesus não podia sequer ser considerado um sábio, porque achava que sua Segunda Vinda se daria ainda antes da morte das pessoas que viviam naquele tempo (referindo-se a Mt 10,23 e 16,28). Muitos outros pensadores ateus (como o autor de best-sellers Bart Ehrman, recentemente) seguiram Russel nessa contestação, como seria de se esperar. Como vimos, os primeiros cristãos pareciam pensar assim. Inclusive, depois de certo tempo houve quem começasse a se inquietar porque tardava a Parusia. O primeiro Papa respondeu a isso da seguinte maneira: “O Senhor não atrasa o cumprimento de sua promessa, como alguns pensam, mas usa da paciência para convosco. Não quer que alguém pereça; ao contrário, quer que todos se arrependam”; depois de ter dito: “Mas há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pd 3,8s.).
Não se pode negar, porém, que temos Jesus dizendo textualmente ao povo que o ouvia, no Evangelho segundo São Mateus: “Em verdade vos declaro: muitos destes que aqui estão não verão a morte, sem que tenham visto o Filho do Homem voltar na majestade de seu Reino” (16,28), e ainda: “Em verdade vos declaro: não passará esta geração antes que tudo isso aconteça” (24,34), referindo-se à Segunda Vinda e ao fim do mundo, o que lhe fora perguntado por seus discípulos (24,3).
Bertrand Russell entendeu exatamente o que Cristo estava dizendo? C. S. Lewis viu o que Russell mais tarde veria também. Para Lewis, esses versículos quase abalaram sua fé completamente. Onde Russell disse que Jesus fez algumas suposições ruins sobre o futuro, Lewis foi mais longe e perguntou se Jesus tinha “enganado” seus discípulos nessas passagens! Mas, diferente de Russell, Lewis não renunciou à fé em Cristo por causa disso. Ao contrário, ele notou que o mesmo Cristo, no mesmo Livro e no mesmo capítulo, apenas dois versículos depois, selaria a questão quanto ao tempo da Parusia, dizendo: “Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe, nem mesmo os Anjos do Céu, mas somente o Pai” (24,36).
Recentemente, o supracitado Ehrman usou esse aparente dilema para promover o seu ataque ao Cristianismo, a Jesus Cristo e à Bíblia. Páginas ateístas, que não perdem tempo em abarcar e utilizar qualquer novidade, informação ou alegação contra a Igreja e os cristãos, geralmente sem se dar ao trabalho de pesquisar se são verídicas, começaram a espalhar suas alegações, incomodando a Fé de talvez milhares. Mas a verdade é que, durante muito tempo, os críticos da Bíblia tiveram uma enorme dificuldade para justificar o seu ateísmo quando confrontados com as profecias bíblicas. Afinal, uma profecia, escrita séculos antes dos eventos descritos, dar detalhes precisos, torna simplesmente impossível negar o seu cumprimento. Vejamos isso melhor.
Por exemplo, no capítulo 53 do profeta Isaías, escrito em torno de 700 a.C., há mais de quarenta informações preditivas sobre o futuro Messias. Um recurso comum ateísta para escapar de tais profecias é a alegação de que elas foram escritas depois dos acontecimentos e travestidas para parecerem preditivas. Mas isso não afeta em nada a profecia de Isaías. Liberais desesperados que fazem de tudo para negar o sobrenatural até tentaram criar uma teoria sobre a existência de dois Isaías para explicar seu sucesso preditivo (que é chamada de Teoria do Deutero-Isaías). Mas nem mesmo essa tese pode acomodar Isaías 53, já que os eventos que se cumpriram ocorreram cerca de 700 anos mais tarde. Em vão, alguns críticos liberais afirmaram que Isaías 53 deve ter sido escrito depois de Cristo. Mas, depois da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto – com cópias exatas da profecias de Isaías que remontam a séculos antes de Cristo –, foi destruída completamente essa alegação. O cumprimento das profecias bíblicas se destaca como um dos fenômenos mais naturalmente inexplicáveis que existem. Portanto, permanece como uma das maiores evidências para o sobrenatural e a Autoridade divina, não só para intervir nos assuntos humanos, mas para anunciar tais intervenções antes que Ele as cumpra.
A solução para o problema que estamos analisando agora pode estar numa palavra grega no texto que tem uma nuance especial e que lhe dá um significado que não é notado em muitos idiomas, como o inglês e o português. Em outros termos, Jesus não está dizendo que essa geração vai ver tudo o que vai ocorrer nos últimos dias, em sua conclusão, mas que eles irão testemunhar o seu início, aquilo que vai culminar nisso tudo. Apresentamos, a seguir, uma explicação técnica do texto em questão.
No texto original em grego, foi usado o tempo verbal aoristo, no vocábulo ginomai (γίνομαι), traduzido por “aconteça”. O aoristo designa somente a ação, sem referência à sua duração (abstração da duração). Exprime a ação efetuada, pura e simples, como um “ponto”: é um tempo indefinido que afirma só o fato, sem especificar a sua duração. Quando o aoristo descreve uma ação ou um evento, pode acentuar uma de três possibilidades: incipiente ou ingressiva, constatativa ou durativa ou culminativa (ou télica).
Tomemos como exemplo a descrição de uma seta que é arremessada em direção a um alvo: o uso do aoristo em uma sentença assim poderia designar 1) essa seta em seu trajeto, cortando o ar por efeito do arremesso; 2) que a seta “voou” em certa direção; 3) a seta atingindo o seu alvo. Esses aspectos do aoristo indefinido podem lançar alguma luz sobre a frase enigmática do Sermão da Montanha: “...não passará esta geração antes que tudo isso aconteça (ginomai[3])”.
A dificuldade reside no fato de Jesus já descreveu o fim do mundo nos v. 24ss em termos vívidos do Sol e da Lua não darem a sua luz , as estrelas “caírem do céu” e os corpos celestes sendo abalados. A menos que a expressão “esta geração” seja estendida para incluir toda a época a partir da primeira até a segunda vinda de Jesus (opção improvável), o aoristo ginomai pode fornecer uma pista. Se entendermos o verbo como ingressivo e traduzi-lo a partir da perspectiva da ação iniciada, podemos traduzir: “...esta geração não passará até que todas essas coisas comecem a acontecer”.
Tal nuance da mesma forma de aoristo também pode ser vista nas palavras do Arcanjo Gabriel a Zacarias (Lc 1,20): “Ficarás mudo e não poderás falar até ao dia em que essas coisas venham a se realizar”. Não só o nascimento, mas o ministério de João Batista foi profetizado por Gabriel nos vv. 13-17, e Zacarias recupera sua voz logo que escreve o nome de seu filho recém-nascido em uma tabuleta (Lc 1,62-64 ). Assim, o v. 20 deve ser traduzido como “Ficarás em silêncio e não poderás falar até o dia em que essas coisas começarem a se realizar”. É a mesma construção.
Deve-se, então, prestar muita atenção ao significado contextual da unidade de sentido maior, e cabe se buscar a interpretação do aoristo como a perícope ou o parágrafo poderá sugerir.
Aí está: o que acabamos de apresentar é uma solução (ao menos parcial) possível e uma maneira de tentar conciliar o Texto sagrado àquilo que sabemos ser a realidade objetiva dos fatos – isto é, evidentemente não veio o fim dos tempos nem a Segunda Vinda ainda durante aquela geração – porque cremos que o mesmo Texto é infalível e, se admitirmos que há nele uma falha assim gritante, então a nossa Fé estaria em risco.
Por outro lado, não podemos abrir mão de reconhecer, se é que pretendemos manter a nossa honestidade intelectual, que uma Fé madura requer a admissão de outras possibilidades menos ortodoxas. Realmente admitimos que a solução apresentada é apenas parcial, porque restam as confirmações das epístolas que confirmam que havia mesmo essa expectativa de que a Parusia viria ainda nos tempos dessa primeira geração de cristãos, como as de São Paulo e São João. De fato, todos os estudos mais aprofundados e o conhecimento do contexto geral desse período local e histórico indicam que não é razoável pretender negar que essa espera da volta do Senhor para muito breve pairava no ar. Certas afirmações bíblicas que hoje, pela pregação da Igreja em todos esses últimos séculos, e até pela força do hábito, interpretamos como profecias para um tempo futuro indefinido ou muito distante da época em que foram proferidas, na época eram entendidas como para dali há pouquíssimo tempo. Como é que se resolve o problema, então?
Como dito, abandonando certos conceitos infantis os quais nos sugere a interpretação fundamentalista da Fé e partindo para uma visão teológica mais abrangente e adulta; sem se deixar de lado, claro, a fidelidade à Tradição. É o que veremos em nosso próximo módulo.
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[1] O nome do primeiro dia da semana do nosso calendário é bastante semelhante em todos os idiomas de origem latina: é domingo em português e em espanhol; domenica no italiano, duminică em romeno, diumenge em catalão. A origem comum de todos esses termos é o adjetivo latino Dominicus, que significa algo que é próprio de quem é senhor ou, mais simplesmente, “do senhor”. Por sua vez, o Dominicus vem de Dominus, que significa Senhor. O nome completo do primeiro dia da semana, em latim eclesiástico, é Dies Dominicus, isto é, “Dia Senhorial”: o “Dia do Senhor”.
A referência, por óbvio, é a Jesus Cristo, Nosso Senhor, e o domingo passou a lhe ser dedicado por ter sido o dia de sua Ressurreição. Com o uso no correr do tempo, a expressão original (Dia Dominico) tornou-se “dia domingo” e, depois, ficou resumida ao abreviado “domingo”. A palavra também perdeu o seu sentido adjetivo original e virou substantivo, referindo-se apenas ao primeiro dia da semana. Sua origem, no entanto, deixa claro o seu significado: o domingo é, literalmente, o Dia do Senhor (Ref.: Carta Apostólica DIES DOMINI).
[2] “O reconhecimento do Senhor Jesus na ‘fração do Pão’ (At 2,42) é indício da relação que existe originariamente entre a fé na Ressurreição e a Ceia Eucarística com a Presença de Jesus no meio dos seus. (...) As duas coisas afirmaram-se ao mesmo tempo na refeição da comunidade; as duas formam, por assim dizer, uma mesma fé em Cristo sempre vivo”. (Loisy, Alfred. Les Actes des Apôtres, Émile Nourry: Paris, 1920, p. 217, apud DANIEL-ROPS [1988, p.24]).
[3] Ginomai pode ser corretamente traduzido por uma ampla gama de flexões de variados verbos no português, e ainda sugerir diferentes sentidos numa sentença, a saber: “tornar-se”; “vir a existir”, “começar a ser”, “receber o ser”; “acontecer”, “surgir”, “aparecer (na história)”, “subir ao palco”; “ser feito”; “acabado/terminado”; “a ser realizado”. Pode se referir a homens “aparecendo” em público; a uma peça “forjada”, etc.
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