
Ao término do módulo anterior, citávamos a prática das virtudes que Deus espera daqueles que o amam e querem viver, junto d’Ele, uma vida interior mais elevada, com as Bem-aventuranças evangélicas e os dons que estas contém e nos conferem[1]. Todavia, não se tratam aqui de elementos essenciais para a nossa salvação. Há uma lista de virtudes que são típicas daqueles que seriamente buscam santificar as suas vidas, mas alguém ainda poderá se salvar, por exemplo, sem ser perfeitamente manso. Também sabemos que nem todos os cristãos sofrerão perseguições por causa da justiça ou serão injuriados, perseguidos e caluniados por causa de Cristo, mas nem por isso deixarão de alcançar o Reino de Deus. Ocorre que, aqui, Nosso Senhor se refere ao caminho realmente estreito e restrito da perfeição cristã.
Nosso Senhor, na passagem em questão, não se refere a algum aspecto ou prática da Teologia moral, mas sim às práticas da perfeição. A primeira coisa que se exige de quem quer chegar ao topo da montanha espiritual, a vida da perfeição, da divina União com Cristo, é que essa pessoa creia, quer dizer, a adesão de Fé às verdades que Ele nos revela. Deus, Ser eterno e infinito, é para nós totalmente incompreensível: Ele se situa em uma realidade (muito simplesmente chamada ‘o Céu’ nas Escrituras) que nos é inacessível, além do espaço e do tempo, logo transcendente de todas as limitações que a nossa dimensão nos impõe. Por isso, pede-nos a adesão integral de nossa razão, sendo este o único meio de nos aproximarmos d’Ele. A transformação que a divina União vai proporcionar só é possível mediante esta adesão incondicional.
Há, por certo, estágios para se atingir essa divina União, que alguns autores dividem em três casas ou vias, outros em quatro, a saber: a 1) Via Purgativa; a 2) Via Iluminativa; a 3) Via Contemplativa e a 4) Via Unitiva. As Vias Iluminativa e a Contemplativa são bastante semelhantes, de modo que podem ser (e ás vezes são) estudadas conjuntamente.
Os seres humanos não foram trazidos à existência e nem estão neste mundo árido para desfrutar dos seus efêmeros prazeres ou para atravessar o tempo que recebem em suas vidas de modo semelhante ao dos animais irracionais – num ciclo irrefletido de “nascer, crescer, reproduzir-se e morrer”, tentando divertir-se ou gozar dos pequenos prazeres que lhe ficam ao alcance sempre que possível, sem nenhuma finalidade mais alta ou que confira sentido a essa existência vazia. Somos criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), amadas pelo mesmo Deus a tal ponto que por amor de nós se fez homem, desceu à nossa realidade e entregou-se em sacrifício pelo nosso bem. Por isso é que enfrentamos desde o primeiro dia de nossas vidas nesta Terra dura a dor, o sofrimento, a frustração, a carência de algo que sequer sabemos identificar, mas cuja ausência é tão importante e tão nítida que nos devora intimamente, a tal ponto de nos tirar a paz mesmo quando tudo parece bem.
Ainda que a pessoa humana esteja saciada em todas as suas necessidades físicas: alimentada, aquecida, sob um teto sobre sua cabeça, limpa e ainda cercada de outras pessoas que ama... algo falta. Sabe que esse algo é a coisa mais importante, e de algum modo isso é sentido tão profundamente que lhe inquieta. E essa pessoa vai buscar saciar essa falta, preencher esse vazio de muitas maneiras, sempre sem sucesso. O máximo que consegue é distrair-se por algum tempo, até que a sensação de vazio profundo retorne, e a deprima. Por quê? Á essa pergunta, Santo Agostinho respondeu magistralmente em suas Confissões: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Ti”!
Por isso é que Nosso Senhor ensinou aquele que insistia com Ele, pedindo-lhe a chave da Perfeição e da Vida: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). De modo semelhante Ele diz que a cada dia precisamos, cada um de nós, tomar a nossa cruz para segui-lo (Lc 9,23).
Para começar, é preciso ser honesto e assumir: nenhum de nós queria escutar essas coisas. Como seria mais fácil se Ele tivesse dito algo parecido com o que diz o “pastor” da televisão: “Venham, paguem o dízimo e terão prosperidade financeira em suas vidas! Façam gordas ofertas no culto e Deus devolverá em dobro! Sejam fiéis nas doações, participem das nossas campanhas e todos os seus problemas serão resolvidos!”... Seria bem mais fácil, assim, e é algo assim que, humanamente, desejaríamos ouvir; por isso mesmo é que esse tipo de pregação falsificada sempre faz muito sucesso. A porta larga para o caminho espaçoso sempre será uma grande tentação. Mas realmente não é assim que a vida interior funciona: se alguém tenta nos convencer de que a porta estreita é larga, esse tal não merece crédito.
Mas a contrapartida é importante, porque isso também não quer necessariamente dizer que será preciso assumir uma vida só de dores e de sacrifícios, dizer adeus a todos os prazeres da vida ou tornar-se uma pessoa amargurada, triste, seca como a figueira que não frutifica. Ao contrário. Muitas almas se perderam, em tempos passados, por causa de uma ênfase exagerada que diretores espirituais davam ao sacrifício, e pela pouca ou nenhuma atenção às consolações da vida de santidade, as quais Deus nos oferece para nos possibilitar a perseverança. E Nosso Senhor já tinha prevenido aos seus que não agissem assim, quando criticou os hipócritas que “atam fardos pesados e difíceis de suportar e os põem aos ombros dos outros; mas eles mesmos nem com o dedo querem movê-los...” (Mt 23,4).
A coragem de abrir mão das ilusões e das falsas esperanças deste mundo é uma parte do processo sempre necessária, sim, mas isso não significa entregar-se a uma vida só de renúncias e abstenções. Não se trata de não poder ter, mas sim de não viver como se a riqueza material fosse a coisa mais importante e de não colocar as nossas posses no centro das nossas vidas; trata-se de desapego, de manter um "espírito de pobre" (cf. Mt 5,3). São Paulo Apóstolo, nas Sagradas Escrituras, resumiu tudo o que buscamos entender aqui em poucas palavras, ao dizer que "aqueles que têm, devem viver como se não tivessem":
...e aqueles que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem, porque a figura deste mundo passa. Quisera ver-vos livres de toda preocupação. (1Cor 7,29-32)
Novamente, Santo Agostinho vem ao nosso encontro; em sua Vida Feliz ele enfrentou francamente o problema do dualismo, a partir da tradição platônica, o neoplatonismo, e da Tradição cristã. Ainda parecia figurar em seu pensamento uma dicotomia básica que opunha este mundo imperfeito ao mundo perfeito, segundo o platonismo o mundo sensível e o mundo inteligível, denominados por Agostinho de mundo carnal e mundo espiritual.
Todas as coisas efêmeras e ilusórias, logo perniciosas na medida em que nos fazem perder tempo, distraindo-nos daquilo que realmente importa, estão aqui conosco, nesta nossa realidade, e as coisas verdadeiras estão lá, fora de nosso alcance: muitas dicotomias foram extraídas dessa triste constatação. Mas Santo Agostinho rejeitou a concepção maniqueísta da existência de dois princípios antagônicos, um bom e outro mal, em eterna oposição. Comparando a felicidade da alma como a saciedade do corpo, opõe aqueles que possuem o supremo Bem (verdadeira felicidade) àqueles que não o possuem, e portanto são infelizes.
A sabedoria está na justa medida da alma. A palavra “modéstia” é oriunda de modus (medida), e temperança, de temperies (proporção). Onde há medida e proporção, não existe nem a mais nem a menos que o necessário. Aí se encontra precisamente a plenitude. Termo esse que opusemos à indigência. E é preferível o emprego da palavra “medida” ao de “abundância”. Pois essa última traz certa ideia de afluxo e transbordamento, algo em profusão. Ora, onde há mais do que é conveniente, constata-se falta de moderação, pois o excesso ocasiona essa falta de medida. Por outro lado, a indigência não deixa de ter certa relação com a abundância. Ao passo que a [justa] medida ignora um e outro: tanto o demais como o de menos. Se analisarmos, contudo, a ideia de “opulência”, achamos que possui necessariamente a medida. Pois, com efeito, o termo “opulência” vem de ops (ajuda). O excesso, porém, como poderia nos ajudar, quando muitas vezes vem nos embaraçar mais do que o faz a penúria? Portanto, no que há em excesso ou em insuficiência existe falta de medida e risco de indigência. Logo, a sabedoria é a medida da alma, pois ela é, evidentemente, o contrário da estultícia. Ora, a estultícia é indigência, e esta tem como contrário a plenitude. Logo, a sabedoria é plenitude, e a plenitude implica a medida. Portanto, a medida da alma encontra-se na sabedoria. (...) Para ser feliz é preciso possuir a sabedoria.
Ser feliz não é outra coisa do que não padecer necessidades, e isso é também ser sábio. Agora, se me perguntardes o que vem a ser a sabedoria — conceito a cuja análise e aprofundamento a nossa razão tem-se consagrado até o presente quanto pode — dir-vos-ei que a sabedoria é simplesmente a moderação do espírito (modus animi). Isto é, aquilo pelo que a alma se conserva em equilíbrio, de modo a não se dispersar em excessos ou encolher-se abaixo de sua plenitude. (...) Quando alguém, tendo encontrado a sabedoria, faz dela o objeto de sua contemplação e a ele se apega, sem se deixar seduzir por coisas vãs, sem se voltar mais para as aparências enganosas cujo peso arrasta e submerge em profunda objeção, tudo se desfaz, por estar ele abraçado a seu Deus. Então, essa pessoa não teme mais a imoderação, nem carência alguma e, por conseguinte, nenhuma infelicidade. Concluamos, pois, que toda pessoa para ser feliz deve possuir sua justa medida, isto é, possuir a sabedoria.[2]
A felicidade está na posse do Sumo Bem: Deus. Logo a saciedade da alma só é encontrada na posse de Deus; mas o próprio Deus quer que os homens o identifiquem como Sumo Bem e o busquem. Portanto, viver bem ou viver conforme a vontade de Deus significa buscar a Deus, e essa busca deverá se equilibrar sobre uma justa medida. A introdução dessa justa medida, este meio-termo, leva Agostinho a considerar que neste mundo o homem não está no mundo inferior apenas em oposição ao superior, mas ele deve estar no mundo inferior em direção ao superior. Não há apenas a posse de Deus (salvação) e a sua perda (perdição), mas também uma possibilidade de virtude por meio da qual se pode seguir gradativamente em direção a Deus.
Portanto, buscar a felicidade é reconhecer a ausência, e a busca é o estigma daquele que se reconhece como não possuidor, mas isso não implica em infelicidade e sim numa insuficiência e incompletude que peregrinam em direção à felicidade e a plenitude.
Todo este preâmbulo à vida interior é importante para fazer entender que buscar uma vida de perfeição interior, em íntima comunhão com Deus, se por um lado não é tarefa simples, e sem dúvida vai exigir coragem e desejo férreo, por outro não se localiza além de nossas capacidades nem deve se confundir com tristeza, languidez ou sofrimento, ao contrário: um dos frutos de uma vida interior bem vivida é a mais profunda alegria.
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[1] Recapitulando as promessas do Sermão da Montanha (Mt 5), 1) quem se fizer pobre em espírito* herdará o Reino dos Céus; 2) os que choram (por amor à justiça) serão consolados; 3) os mansos herdarão a Terra; 4) os que têm fome e sede de justiça serão saciados; 5) os misericordiosos alcançarão misericórdia; 6) os puros de coração verão a Deus; 7) os pacificadores serão chamados filhos de Deus; 8) dos que sofrem perseguição por causa da justiça é o Reino dos Céus, 9) os que são injuriados, perseguidos e caluniados por causa de Cristo receberão uma grande recompensa no Céu.
[2] SANTO AGOSTINHO. A vida feliz, n.s 32s. A sabedoria: justa medida da alma, pp. 153.
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