Módulo 12: Bíblia 1 | Os manuscritos do Mar Morto e o cânon de Jâmnia


Continuaremos com os nossos estudos de introdução à Septuaginta (LXX), a primeira versão grega do Antigo Testamento que significa “Tradução dos Setenta Homens” ou ainda “Interpretatio secundum (juxta) Septuaginta Seniores” (Tradução dos Setenta Anciãos) e às razões de sua grande importância no conhecimento das Sagradas Escrituras. Veremos neste capítulo ou módulo sobre a importância da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e as origens da atual Bíblia hebraica com o Cânon de Jâmnia e suas implicações para a Fé cristã.


A importância das descobertas do Mar Morto

Praticamente todos aqueles que se interessam pelo estudo das Sagradas Escrituras já deverá ter ouvido falar, ao menos alguma vez, sobre a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto. Ocorre que partes da LXX, anteriores ao ano 70 d.C., foram encontradas na Judeia entre esses inestimáveis manuscritos, descobertos em Qumran entre o final dos anos 1940 e correr dos 1950[1]. Entre esses fragmentos, constam trechos de Livros deuterocanônicos do AT, e há uma cópia do Eclesiástico, em hebraico, encontrada nas ruínas de Massada, datada como do início do primeiro século a.C. 

            Tais evidências comprovam acima de qualquer dúvida razoável que os Livros deuterocanônicos eram conhecidos e usados pelos judeus da Palestina. Ante tantas provas avassaladoras, resta apenas uma mui débil tentativa de se alegar que tais textos teriam sido utilizados apenas por certos grupos ou seitas menores, o que se configura absurdo, pois, como já demonstramos, os Apóstolos e o próprio Cristo os citaram. Como se não bastasse, tal modo de pensar é frontalmente contrário ao que diz a pesquisa especializada mais abalizada: 
 

Tanto no judaísmo moderno quanto no cristianismo, uma ‘seita’ é, geralmente, um ramo de um tronco religioso maior e é frequentemente vista como excêntrica ou desviada nas suas crenças. Mas os pesquisadores e leigos deveriam recordar que durante todo o período de existência de Qumran, os fariseus e os saduceus eram ‘seitas’, assim como eram os essênios. Foi apenas a partir do século II d. C. que passou a se formar um tipo de judaísmo ‘aquele dos fariseus, dos rabis’ que que veio a se tornar padrão para o povo judeu como um todo. Tais matérias são de menor importância se comparadas com os manuscritos bíblicos. Primeiro, porque todos os pesquisadores concordam que nenhum dos textos bíblicos (tais como Gênesis ou Isaías) foi composto em Qumran; ao contrário, todos eles se originaram antes do período de Qumran. Também é aceito que muitos ou a maioria desses manuscritos foram trazidos de fora para Qumran e, depois, aí reproduzidos. Isto significa que o valor da maioria dos manuscritos bíblicos enganam, não em estabelecer precisamente onde foram escritos ou copiados, mas especificamente quanto ao estudo das formas textuais que encerram[2].

 

            Podemos afirmar com toda a certeza, portanto, que a LXX era conhecida pelos judeus  alexandrinos e palestinos, e por Jesus Cristo e seus Apóstolos. O tempo levaria as sinagogas e a Igreja a escolherem alguns livros da LXX como canônicos e a rejeitarem outros. 
 

            Aproximadamente no ano 90 d.C., esse mesmo grupo de rabinos definiu uma lista dos livros que, segundo eles entendiam, deveriam ser aqueles considerados sagrados pelos judeus. Nasceu assim o chamado Cânon de Jâmnia, que por sua vez deu origem à atual Bíblia Hebraica. 


O Cânon de Jâmnia

Nos tempos de Nero, imperador romano de trevosa memória, desencadeou-se a primeira revolta aberta dos judeus da Palestina contra o domínio de Roma (66-70 d.C.).Na primavera de 70, Tito sitiou Jerusalém: a cidade inteira foi saqueada e arrasada. O Templo foi destruído no dia 10 do mês de agosto desse mesmo ano. Os fariseus de Jerusalém[3] transferiram-se então para a cidade de Jâmnia. Lá, formaram uma próspera escola rabínica.

            O Cânon de Jâmnia excluiu os sete livros deuterocanônicos do AT e os acréscimos de Daniel e Ester do rol de suas Escrituras sagradas, muito provavelmente movidos inclusive pela intenção de dissociar o seu culto religioso daquele dos cristãos.

            Alguns exegetas protestantes utilizam-se do Cânon de Jâmnia como álibi para afirmar a tese da existência de um cânon bíblico muito anterior, apenas ratificado em Jâmnia, definido pela tradição  judaica. Segundo essa tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras Sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral (‘Escrituras’) indicaria que tinham em mente uma quantidade precisa de livros incluídos sob tal título. Apresentam como álibi para essa teoria todos os registros bíblicos que mencionam genericamente “as Escrituras”. Um exemplo está no trecho em que São Lucas Evangelista descreve o diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: “...começando por Moisés, e discorrendo por todos os Profetas, explicava-lhes o que d’Ele se encontrava dito em todas as Escrituras” (Lc 24,27). A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que, já no tempo de Cristo, estava fixada uma lista de livros canônicos.

            Outro caso semelhante é a passagem em que Nosso Senhor manda os fariseus, legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que n’Ele se cumpriram todas as profecias messiânicas (Jo 5,39)[4]. Ao utilizar-se da expressão “Escrituras”, Jesus estaria se referindo a um conjunto de livros já reconhecido naquele tempo. 

            Ainda outro argumento semelhante procura fundamentação na expressão “Moisés e os Profetas” ou “A Lei e os Profetas” citada nos Evangelhos, como em Lc 24,44, onde Jesus, ao aparecer aos  Apóstolos e discípulos, diz: “(...)era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. Haveria aqui uma evidência de que esse suposto cânon judeu estaria já organizado há tempos. Assim, tenta-se defender a existência de um cânon bíblico preexistente, organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos.

            Aí estão, mais uma vez, argumentos frágeis, para dizer o mínimo; pois, em todas essas referências, o Cristo tenta demonstrar que é n’Ele que se cumprem as profecias messiânicas. E onde estão essas profecias? Ora, estão justamente nos Livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Assim, é bastante claro que Jesus esteja se referindo simplesmente aos Livros que geralmente se enquadravam nessas categorias, assim como também qualquer um que leia os textos será capaz de notar que o Senhor em momento algum faz alusão a um cânon sagrado definitivo supostamente reconhecido e observado no seu tempo.

            O simples ato de se dizer “as Escrituras” ou falar em “Lei e os Profetas”, só por alguém que esteja muito predeterminado a crer no argumento protestante poderia ser entendido como sinônimo de se afirmar que todos esses Livros estavam já definitivamente estruturados, reunidos e organizados em um único conjunto definitivamente canonizado.

__________
[1] Algumas dessas partes foram encontradas na denominada ‘Caverna 4’ (119 LXX Lev.; 120 pap LXX Lev.; 121 LXX Num.; 122 LXX Deut.), mais um texto não identificado da LXX grega encontrado na ‘Caverna 9’ (Q9), e um fragmento de papiro, também em grego, encontrado na ‘Caverna 7’ (LXX Exod.). Realmente a ‘Caverna 7’ trouxe ainda muitos pequenos fragmentos da LXX, cujas identificações até recentemente permaneciam sem uma classificação definitiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Por favor, identifique-se com seu nome ou um apelido (nickname) ao deixar sua mensagem. Na caixa "Comentar como", logo abaixo da caixa de comentários, você pode usar a opção "Nome/URL".

** Seu comentário poderá ser publicado em forma de post, a critério dos autores do blog Fiel Católico.

*** Comentários que contenham ataques e/ou ofensas pessoais não serão publicados.

Subir