A conversão, no cristianismo, é um processo que se dá com base principalmente na vontade. Neste processo, vale menos o intelecto, e menos ainda a emoção, por seu caráter efêmero, fugaz, inconstante. Atualmente, entrentanto, prosperam grandes movimentos religiosos que valorizam excessivamente o sentimentalismo, criando e alimentando nos fiéis a ideia de que o “sentir-se bem” deve servir como principal parâmetro para decidir se aquele caminho religioso é autêntico. "Aqui está Deus, porque aqui eu me sinto bem!", é o pensamento dos frequentadores de tais movimentos. Acham que a oração ideal é aquela em que o sujeito chora, fica emocionado, sente um ardor no peito... As Missas e/ou cultos são excessivamente animados, com guitarras, bateria alta, gritos, bateção de palmas a todo momento... Tudo isso cria um estado de euforia, leva alegria aos corações, mas... Trata-se de uma alegria passageira. E a pessoa fica condicionada a querer sempre mais. Logo começa a pensar que numa celebração em que não aconteça todo aquele ardor festivo, Deus não está presente. Será?
Os grandes autores do cristianismo entenderam que a construção do cristão fiel passa por duas etapas distintas: primeiro, a Via da Purificação; depois, a Via da Iluminação.
A Via da Purificação
O primeiro momento da Via da Purificação ocorre quando a alma encontra Deus: sente-se saciada e amada por Deus. Começa a reconhecer Deus como amigo, companheiro, o Deus que é Bom, que nos ama e salva. As orações são fervorosas, a alma sente-se “enamorada” de Deus.
Mas no segundo momento da Via da Purificação, a alma começa a perceber que na realidade ela continua com os mesmos defeitos que tinha antes de conhecer a Deus. É um momento difícil e delicado. O buscador percebe que luta e luta contra si mesmo, mas é ainda o mesmo ser humano pequeno e falho (a 'luta da carne contra o espírito', vista em Mc 14, 38; em todo o capítulo 7 da Epístola aos Romanos e em outros textos bíblicos). A oração, então, perde fervor. A alma tem a impressão de que Deus não lhe responde. Surge um vazio. E é então que dois caminhos se abrem:
1º - A Purificação – a alma começa a aprender que, mesmo em Comunhão com Deus, ela continua somente humana, e continua fraca. Que tem que se entregar a Deus a cada dia, a cada instante, e que essa entrega basta. Entende que ser cristão é entregar-se, manso e humilde, diante do Criador. Não é preciso e de nada adianta buscar Deus na emoção, nas sensações intensas… É a silenciosa e simples Presença de Deus que lhe dá força. E essa pessoa que ama a Deus não somente no falar, mas em seu íntimo, prossegue, esquecendo de si própria. É um outro processo delicado: o da eliminação do amor próprio.
Importante dizer que eliminar o amor próprio, nesse caso, não quer dizer desprezar-se ou odiar a si mesmo, num sofrimento doentio, esquizofrênico e estéril. Eliminar o amor próprio é a pessoa "negar-se a si mesma", como disse Nosso Senhor (Mc 8, 34-35), no sentido de reconhecer-se pequena, incapaz de alcançar a salvação por seu próprio poder ou méritos. Quer dizer aceitar a própria incapacidade e render-se diante da Soberania Divina. Por nós mesmos, nada podemos fazer (Jo, 15, 5). É Deus que realiza em nós as grandes e pequenas coisas.
2º - A Queda – a alma não suporta mais o fato de que Deus não lhe responde. Não suporta que seja tão fraca. Começa a achar que exagerou na dose, que na realidade tudo não passou de um furor vazio, uma ilusão. A fé começa a se enfraquecer, cai nos vícios, a pessoa se perde do caminho da purificação, retomando sua vida anterior.
A Via da Iluminação
Mas, finalmente, aquele que vence a etapa da Via da Purificação começa a Via da Iluminação. A alma adquire maior consciência da Presença de Deus, começa a ver o Toque de Deus no dia-a-dia, a manifestação do Amor de Deus às suas criaturas, mesmo no sofrimento, mesmo nas dores e dificuldades... Começa a perceber e saber que Deus está sempre com ela. A alma tem o que se chama de “Presença de Deus”.
Mas a via da iluminação tem um risco: a alma está subindo importantes degraus de proximidade a Deus. E quanto maior a altura, maior a queda. A alma deve permanecer no seu caminho de encontro a Deus; o desafio nessa fase, porém, é superar o orgulho espiritual, isto é, achar-se melhor que as outras pessoas. Julgar-se especial, mais santo(a), mais sábio, mais iluminado... Corre o risco até de achar ridícula a manifestação de fé dos outros. A alma vive um egoísmo, uma soberba espiritual. Sabe que Deus está com ela; ama a Deus, mas tem dificuldade em amar as demais pessoas, porque enxerga seus erros e não os compreende. Quer que as coisas sejam do seu jeito, não aceita quem vive de outra forma.
Esta é a etapa definitiva a ser vencida. Se o cristão conseguir superar mais este desafio, estará verdadeiramente próximo de Deus e de uma vida cristã abençoada. - O que não significa estar livre de todos os problemas e dificuldades deste mundo, mas saber lidar com todas as situações, de modo sereno e tranquilo. A alegria não mais se dissipa, pois existe a consciência da permanente Presença de Deus em todos os momentos. É uma alegria, porém, calma, silenciosa, perene, refletida, prudente, sensata... Vemos esse tipo de comportamento, reflexo da autêntica Comunhão com Deus, nas vidas dos santos. É essa fé e essa consciência que conferem o amor, a coragem, a paciência e a persistência necessárias para ser cristão na prática.
Conclusão
Talvez as celebrações citadas no começo deste artigo, aquelas fundamentadas na emoção, coloquem os fiéis que delas participam no caminho da purificação, naquele primeiro momento em que a pessoa "descobre Deus": é aquele momento muito feliz, alegre e agradável, após a conversão espiritual. É quando a pessoa começa a chegar perto de responder às grandes perguntas existenciais (Quem eu sou? De onde venho? Por que existo? Quem é Deus?).
Os movimentos pentecostais ou carismáticos alimentam esse clima de emoção… Com o tempo, porém, surge a inevitável crise de identidade espiritual no sujeito. Essa alegria inicial não pode durar para sempre, ao menos não no plano sensitivo, expansivo, e os grandes doutores da Igreja falaram sobre isso. E então, quando a pessoa começa a perceber que está “enfraquecendo” na fé (um sinal que serve para filtrar os que realmente amam a Deus daqueles que o buscam porque 'sentem-se bem' nos templos ou para obter favores), se o esforço se concentrar somente em manter aquela emoção inicial... O risco de cair no abismo é grande.
É aí que o católico mal orientado abandona a Missa, abandona a Igreja, abandona a Deus. Sente como se tudo tivesse ficado no passado, quer resgatar a alegria, a euforia, não se conforma com o esfriamento dos sentidos... Muitos, nesse momento de fragilidade, acabam encontrando alguma seita "evangélica", e na ânsia por recuperar a sensação inicial da conversão, convertem-se para uma nova religião, e a partir daí continuam migrando de uma "igreja" para outra, sem nunca encontrar verdadeiramente o que buscam.
A emoção, a euforia, a explosão do amor devoto... Tudo isso é natural no início da vida cristã, mas quando não se trabalha com a formação sólida e tenta-se "prender" a pessoa somente pela emoção, o que se está fazendo é abrir a porta para a perda da fé ou mudança de religião. Esse pretenso "carismatismo" forçado é algo que se situa fora da fé, fora da Verdade, fora da religião tal como Deus a criou. De que importa ou do que vale, por exemplo, falar um "blá blá blá" que ninguém entende? Deus já não revelou à Igreja tudo o que era necessário para a nossa salvação?
Ninguém pode depender da emoção, ninguém deve tornar-se "refém" das próprias sensações para continuar fiel a Deus. Deus está na alegria da conversão, mas está também na oração silenciosa, na contemplação do Mistério Divino, na quietude da adoração interior verdadeiramente espiritual, no silêncio de uma reflexão cheia de amor e devoção sincera... Nosso Senhor Jesus Cristo disse: "Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade" (João 4, 24). Para adorar em espírito seria preciso participar de shows, gritar, dançar, bater palmas, seguir coreografias? Ou essa exortação combina mais com aproximar-se de Deus no silêncio do coração? A parábola do fariseu e do publicano no Templo pode nos auxiliar neste estudo:
"Dois homens subiram ao Templo com o propósito de orar: um, fariseu; outro, publicano. O fariseu, em pé, orava no seu interior desta forma: 'Graças te dou, ó Deus, que não sou como os demais homens: ladrões, injustos e adúlteros; nem como o publicano que está ali. Jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de todos os meus lucros'. O publicano, porém, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: 'Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!' Digo-vos: este voltou para casa justificado, e não o outro. Pois todo o que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado" (Lc 18, 9-14).
A parábola trata, em primeiro lugar, de humildade, mas também nos dá uma pista clara sobre a maneira ideal de elevar nossas orações a Deus. O Senhor disse também: "Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente" (Mateus 6, 6). Um antigo cântico cristão diz: "No silêncio do coração, o Senhor faz ouvir a sua Voz...".
Todas as vezes que a Bíblia fala em oração, em cultuar a Deus, fala em silêncio, em reverência. O apóstolo Paulo gastou 40 versículos para tratar do culto público (I Coríntios 14). Falou da necessidade de cantar em espírito, e também com a mente, com o entendimento (I Co 14, 15). Termina o capítulo dizendo: "Tudo, porém, seja feito com decência e ordem" (I Co 14, 40). Será preciso dizer mais?
Concordo quase que plenamente com esse artigo, pórem me tire uma dúvida o que significa: clamar e invocar o nome do SENHOR, já que os discípulos faziam isso? Um abraço.
ResponderExcluirHonestamente, não entendi a dúvida.
ResponderExcluirQuando rezamos o Pai Nosso, na Santa Missa, não estamos invocando o Nome do Senhor? Quando clamamos juntos "Atendei à nossa súplica" ou quando entoamos o "Santo", não estamos clamando a Deus? Quando fazemos as nossas orações com fé e fervor, quando acompanhamos o canto litúrgico, quando participamos na Adoração ao Santíssimo Sacramento do Altar, isso não é "clamar e invocar" a Deus?
"Clamar e invocar" o Nome do Senhor não tem que ser com desordem e tumulto, mas, como disse o Apóstolo Paulo e citado no final do post, deve ser feito com decência e ordem.
Gostaria de deixar bem claro que o artigo que estamos comentando não é contra a RCC ou os movimentos carismáticos ou pentecostais no catolicismo. Embora eu mesmo não aprecie os modos praticados por esses grupos, eu respeito e aceito aquilo que a Igreja aceita e acolhe.
O nosso artigo é apenas uma reflexão a respeito do estilo de espiritualidade que esses movimentos representam, e uma tentativa de fazer desabrochar um amadurecimento e uma nova consciência sobre o assunto.
Aqui no Brasil está se criando um hábito muito perigoso de se entender que para entrar em Comunhão com Deus é preciso emocionar-se, experimentar uma sensação "forte", que leve às lágrimas ou à euforia... Vejo pregações apelativas, feitas aos gritos, com musiquinha de fundo para emocionar... Tudo isso é artificial, eu não preciso chorar, pular e dançar durante a Missa para mostrar a minha fé ou sentir que estive com Jesus Cristo. Sinto-me muito mais próximo dEle quando participo de uma celebração mais tradicional, com canto litúrgico, orações calmas e piedoso silêncio após a Eucaristia.
Muitos dos nossos avós eram muito mais católicos do que nós, e não existiam esses movimentos naquele tempo. Eles assistiam à Missa em latim, e mesmo sem entender a maior parte da celebração, sua fé era tão forte que para eles era impensável mudar de religião ou abandonar a fé. Respeito quem pensa diferente, mas também exijo ser respeitado.
Henrique Sebastião
Ou seja não é pecado ou será? clamar:gritar,soltar vozes altas,bradar,berrar,vociferar. Eu creio que Deus aceita essa forma de cultuar, como ele aceita a forma mais calma,silenciosa... me perdoe, mas temos que ter cuidado com nossa achologia, em hipótese nenhuma desrespeitei o seu pensar diferente, acho que tudo tem os dois lados da moeda e as vezes só estamos enxergando um lado. Jesus é o Senhor!!!
ResponderExcluirOlha, anônimo, não se trata de definir aqui "o que é pecado e o que não é pecado"...
ResponderExcluirAgora, "berrar e vociferar" dentro da Igreja, como você disse, na hora da Missa, isso é, no mínimo, bem inadequado, você não acha? Passa a sensação de que se crê num "deus surdo", que não é capaz de ouvir as orações sussurradas ou silenciosas, para o qual é preciso berrar com toda a força dos pulmões, ou então não seremos ouvidos...
Cantar alto é uma coisa, rezar com fervor, em voz alta, é outra. Agora, "berra e vociferar", vamos combinar que aí você exagerou, e muito...
Outra coisa: se você ler o post que estamos comentando com atenção, vai perceber que ele não contém nada de "achologia", como você diz. O texto está bem fundamentado na Escritura e na Tradição de dois milênios da Igreja, e busca ser coerente e respeitoso. Abraço fraterno.
Parabéns, Voz da Igreja! Sem fanatismos, sem fundamentalismos, mas com coerência, vamos pelo caminho certo. Salvem a Liturgia!
ResponderExcluirDenis