Módulo 9: Ascética e Mística 2 | Manual prático para a vida interior – lição VII


Lição de amor de Santo Afonso Maria de Ligório


Na parte prática deste módulo, propomos para meditação as palavras cheias de amor escritas por um grande Santo da Igreja, que foi bispo, escritor e poeta, um gigantesco diretor espiritual e o Fundador da Congregação dos Padres Redentoristas. Homem de oração e dado a muitas penitências, Santo Afonso ficou conhecido justamente pelo seu profundíssimo amor a Jesus Cristo, o qual transparece de suas obras clássicas. Segue.


Ó, meu caro Redentor, se eu vos contemplo exteriormente, não vejo senão chagas e sangue; se observo vosso interior, vejo vosso coração todo aflito e desconsolado. Leio sobre essa cruz que Vós sois Rei, mas que insígnias tendes de realeza? Eu não vejo outro trono a não ser esse lenho de opróbrio; não vejo outra púrpura a não ser vossa carne ensanguentada e dilacerada; não vejo outra coroa além desse feixe de espinhos que tanto vos atormenta. Ah, sim, tudo vos proclama Rei, não de honra, mas de Amor: essa cruz, esse sangue, esses cravos e essa coroa são incontestavelmente insígnias de amor.


Assim Jesus, na sua Cruz, não procura tanto a nossa compaixão quanto o nosso afeto. E, se pede compaixão, pede-a unicamente para que ela nos induza a amá-lo. Ele merece já por sua bondade todo o nosso amor, mas agora procura ser amado ao menos por compaixão. Ah, meu Jesus, tivestes muita razão de afirmar, antes da vossa Paixão, que uma vez levantado na Cruz, havíeis de atrair para Vós todos os corações. “Quando Eu for exaltado, atrairei tudo para Mim” (Jo 12,32). Oh! Quantas setas de fogo enviais aos nossos corações desse Trono de Amor! Oh! quantas almas felizes atraístes a Vós dessa cruz, livrando-as das fauces do Inferno. Permiti-me, pois, dizer-vos: Com razão, Senhor, vos colocaram no meio de dois ladrões, pois Vós, com vosso amor, haveis roubado a Lúcifer tantas almas que por justiça lhe pertenciam por causa de seus pecados. E eu espero ser uma destas. Ó, chagas de meu Jesus, ó, belas fornalhas de amor, recebei-me no meio de vós, para me abrasar, não já no fogo do Inferno por mim merecido, mas nas santas chagas de amor daquele Deus que por mim quis morrer consumido de tormentos.


Os carrascos, depois de haverem crucificado a Jesus, dividem entre si as suas vestes, segundo a profecia de Davi: “Repartiram entre si os meus vestidos e lançaram sorte sobre a minha túnica” (Sl 21,19); e, assentando-se todos, esperam por sua morte. Minha alma, assenta-te aos pés daquela Cruz e debaixo de sua sombra de salvação repousa, durante tua vida inteira, a fim de que possas dizer com a Esposa sagrada: “Assentei-me à sombra d’Aquele que eu tanto havia desejado” (Ct 2,3). Oh! Que repouso encantador é o que encontram as almas amantes de Deus junto a Jesus Crucificado, no meio dos tumultos do mundo, das tentações do Inferno e dos temores dos Juízos divinos!


Estando Jesus em agonia, com os membros doloridos e com o Coração desolado e triste, procurava quem o consolasse. Mas, ó, meu Redentor, não se encontra alguém que vos console? Se ao menos houvesse alguém que se compadecesse de Vós e com lágrimas acompanhasse vossa agonia tão atroz! Mas, ó tristeza, vejo que uns vos injuriam, outros vos escarnecem, outros ainda blasfemam contra Vós. Estes dizem: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz!” (Mt 27,40), e aqueles: “Ó, tu, que destróis o templo de Deus... salva-te a Ti mesmo” (Mc 15,29-30); e outros ainda: “Salvou a outros e não pode salvar-se a Si mesmo” (Mt 27,42). Senhor, que condenado se viu jamais tão coberto de injúrias e opróbrios no momento de sua morte no patíbulo infame? 


[...]


Persuadamo-nos de que nunca chegaremos a adquirir um grande amor para com Deus, a não ser por meio de Jesus Cristo, e se não tivermos uma devoção particular para com a sua Paixão, por meio da qual Ele nos alcançou a divina Graça. Escreve o Apóstolo: “...Por meio d’Ele temos acesso junto ao Pai” (Ez 2,18). Se não fosse Jesus Cristo, o caminho das graças estaria fechado para nós, pecadores: Ele nos abriu a porta, introduziu-nos perante o Pai, e pelos merecimentos de sua Paixão nos obtém o perdão de nossos pecados e todas as graças que precisamos. Infelizes de nós, se não tivéssemos Jesus Cristo! Quem poderá louvar e agradecer suficientemente o amor e a bondade que este bom Redentor nos demonstrou, querendo morrer por nós, pobres pecadores, para nos livrar da morte eterna? “É difícil haver quem morra por um justo, ainda que talvez alguém se anime a morrer por um homem bom” (Rm 5,7). 


Apenas se encontra quem queira morrer por um homem justo; mas Ele, Jesus Cristo, quis dar a vida por nós quando éramos pecadores: “Porque ainda quando éramos pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm 5,8-9). Por isso nos assegura o Apóstolo que, se estivermos resolvidos a amar Jesus Cristo a todo o custo, podemos esperar todo o auxílio e apoio do Céu: “Se, quando éramos inimigos de Deus, fomos com Ele reconciliados pela morte de seu Filho, muito mais agora, já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Rm 5,10). 


Notem os que amam a Jesus que fazem injúria ao amor que nos consagra esse bom Salvador, quando temem que Ele lhes negue as graças necessárias para se salvarem e fazerem-se santos! E para que nossos pecados não nos façam perder a confiança, continua São Paulo: “Não acontece, porém, com o dom o mesmo que com o pecado, porque, se pelo pecado de um morreram muitos, ainda mais abundantemente a Graça de Deus e o Dom pela Graça de um só Homem, Jesus Cristo, derramou-se sobre muitos” (Rm 5,15). Com isso quer significar que o Dom da Graça alcançado pelo Redentor por sua Paixão nos trouxe maiores bens do que foram os males ocasionados pelo pecado de Adão, já que têm maior valor os merecimentos de Jesus Cristo para obrigar a Deus a nos amar que o pecado de Adão para nos atrair a ira do Mesmo. “Pela graça de Jesus Cristo adquirimos maiores bens do que os que havíamos perdido pela inveja do demônio”[1].

Terminemos, almas devotas, amemos Jesus Cristo, amemos esse Redentor que muito merece ser amado e muito nos amou, não deixando de fazer coisa alguma para ganhar o nosso amor. Basta saber que, por nosso amor, quis morrer consumido de dores numa cruz e, não contente com isso, deixou-se ficar no Sacramento da Eucaristia, onde em Alimento nos dá o mesmo Corpo que sacrificou por nós, e como Bebida o mesmo Sangue que por nós derramou em sua Paixão. Seríamos muito ingratos, não só ofendendo-o, mas se também o amássemos pouco, e se não lhe dedicássemos todo o nosso amor.


Ó meu Jesus, pudesse eu me consumir inteiramente por Vós, como o fizestes por mim! Mas, visto tanto me haverdes amado e me obrigado a amar-vos, ajudai-me então a não vos ser ingrato, e muito ingrato eu seria se amasse alguma coisa fora de Vós. Amastes-me sem reserva, também eu quero amar-vos sem reserva. Tudo abandono, renuncio a tudo para dar-me todo a Vós e para não ter em meu coração outro amor senão o vosso. Aceitai-me, meu Amor, por piedade, sem considerar os desgostos que vos causei no passado! Vede que eu sou uma daquelas ovelhas pelas quais derramastes vosso sangue: nós, pois, vos suplicamos que socorrais aos vossos servos que remistes com vosso precioso Sangue. 


Esquecei-vos, meu querido Salvador, das ofensas que vos fiz. Castigai-me como quiserdes, livrai-me unicamente do castigo de não poder vos amar, e depois fazei de mim o que vos aprouver. Tirai-me tudo, meu Jesus, mas não me priveis de Vós, meu único Bem. Fazei-me conhecer o que quereis de mim, que eu com vossa Graça quero executar tudo. Fazei que eu me esqueça de tudo, para me recordar só de Vós e das penas que sofrestes por mim. Fazei que eu em nada mais pense senão em dar-vos alegria e amar-vos. Por favor, olhai-me com aquele afeto com que me contemplastes no Calvário, ao morrer por mim na Cruz, e ouvi-me! 


Em Vós eu ponho todas as minhas esperanças. Meu Jesus, meu Deus, meu Tudo! Ó Virgem Santa, minha Mãe e minha esperança, Maria, recordai-me ao vosso Filho e obtende-me a fidelidade no seu Amor até à morte!


Amém.



Essas belíssimas reflexões são parte da obra “A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo” (vide Bibliografia), uma coletânea de meditações que remetem a uma espiritualidade extremamente elevada de um dos maiores amantes de Cristo que conhecemos. Com toda a certeza causará estranheza, medo e a consideração de que tais pensamentos reflitam uma impossibilidade, ou que visem um ideal de santidade inatingível. 


De fato, Santo Afonso insiste e repete a todo instante súplicas a Nosso Senhor para que o prive de todo prazer que não seja Ele próprio, que não lhe permita nenhuma alegria a não ser amar o próprio Salvador, que não lhe conceda qualquer prazer deste mundo, mas que seu único prazer e alegria seja a Comunhão com o mesmo Cristo. Quem de nós poderia repetir honestamente, junto com o Santo, tais pedidos? Somos capazes disso? Querer que Deus nos prive de prazeres e alegrias, de qualquer consolação nesta vida a não ser estar próximo d’Ele, vivendo conforme a sua Santa Vontade?


Ai dos que têm consciência obsequiosa quando leem tais coisas! Para sermos bons católicos teremos que viver, então, uma vida só de dores, uma vida triste, a tentar compensar todos os dias, inútil e eternamente, os padecimentos que Nosso Senhor sofreu por amor a cada um de nós? A resposta não é assim tão dura, embora seja realmente radical. É que tudo, absolutamente tudo aquilo de que desfrutarmos nesta vida, todas as consolações e pequenas alegrias que Deus, por sua Misericórdia infinita, nos conceder, devem ser vividas em espírito de gratidão e adoração ao mesmo Deus, em Comunhão com Ele, Criador e Redentor nosso, que tanto nos amou a ponto de tornar-se um de nós, até ser sumamente humilhado, torturado e sacrificado, com dores e angústias extremas, pelo nosso bem. Manter essa verdade em mente faz entender porque o egoísmo e a soberba estão entre os piores pecados que se pode cometer.

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[1] S. Leão, Serm. 1 de Ascens.

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