Texto de São João da Cruz [1]
HÁ DUAS MANEIRAS de resistir aos vícios e adquirir as virtudes:
1. Por oposição
Existe uma maneira mais comum e não tão perfeita que consiste em procurar resistir a algum vício por meio de atos de virtude que se lhe opõem e que destroem tal vício, pecado ou tentação.
Como por exemplo, ao vício ou tentação da impaciência ou do espírito de vingança, que sinto em minha alma por algum dano recebido ou por palavras injuriosas, eu quisesse resistir lançando mão de considerações apropriadas; por exemplo, considerando a Paixão do Senhor: “Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador” (Is 53,7); ou ainda trazendo à lembrança os bens que se adquirem com o sofrimento e com o vencer-se a si mesmo; ou, ainda, pensando que Deus nos ordenou que sofrêssemos por advir daí nosso aproveitamento; etc.
Por meio dessas considerações, consinto em sofrer, posso chegar até a querer e aceitar a citada injúria, afronta ou dano, e isso visando a glória e a honra de Deus. Essa maneira de resistir, opondo-se à tentação, vício ou pecado, dá ocasião ao exercício da paciência e é um bom modo de resistir, ainda que árduo e menos perfeito.
2. Pela via do amor a Deus
Há outra maneira — mais fácil, proveitosa e perfeita —, de vencer vícios e tentações e adquirir e conquistar virtudes. Consiste no seguinte:
A alma deve se aplicar apenas aos atos e movimentos anagógicos[2] e amorosos, prescindindo de outros exercícios estranhos; por esse meio, consegue opor resistência e vencer todas as tentações do nosso adversário, alcançando assim as virtudes, em grau eminente.
Ao sentirmos o primeiro movimento ou investida de algum vício, como luxúria, ira, impaciência, espírito de vingança por uma ofensa recebida, etc., não procuremos resistir opondo um ato da virtude contrária, como já ficou dito, mas, desde os primeiros assaltos, façamos logo um ato ou movimento de amor anagógico contra o vício em questão, elevando nosso afeto a Deus, porque com essa diligência já a alma foge da ocasião e se apresenta a seu Deus e se une com Ele.
Ora, desse modo, consegue vencer a tentação e o inimigo não pode executar o seu plano, pois não encontra a quem ferir, uma vez que a alma, por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo à tentação. Portanto, não acha o adversário por onde atacar e dominar a alma; ela já não se encontra ali onde ele a queria ferir e lhe causar dano.
E então, ó maravilha! A alma, como que esquecida do movimento vicioso, junta e unida ao seu Amado, nenhum movimento sente do tal vício com que o demônio pretendia tentá-la, tendo mesmo, para isso, arremessado seus dardos contra ela; primeiramente, porque subtraiu o corpo, como ficou dito, e, portanto, já não se encontra ali; assim, se me permitem a expressão, seria quase como tentar um corpo morto, pelejar com o que não é, com o que não está, com o que não sente nem é capaz de ser tentado, naquela ocasião.
Dessa maneira vai-se formando na alma uma virtude heroica e admirável, que o Doutor Angélico, Santo Tomás, denomina virtude da alma perfeitamente purificada. Essa virtude, diz o Santo, é a que vem a ter a alma quando Deus a eleva a tal estado que ela já não sente as solicitações dos vícios, nem seus assaltos, nem arremetidas ou tentações, pelo elevado grau de virtude a que chegou. E daqui lhe nasce e advém uma tão sublime perfeição que já não lhe afeta que a injuriem ou que a louvem e enalteçam; que a humilhem, que digam mal dela ou que digam bem.
Porque, como os movimentos anagógicos-amorosos conduzem a alma a tão elevado e sublime estado, o efeito mais próprio deles com relação a ela é fazê-la esquecer todas as coisas que estão fora de seu Amado, que é Jesus, o Cristo. E daqui lhe vem, segundo referimos, que estando a alma unida a seu Deus e entretida com ele, as tentações não encontram a quem ferir, pois não podem elevar-se ao nível ao qual a alma subiu [ao Céu, a Deus], ou até onde foi elevada por Deus: “Nenhum mal te atingirá” (Sl 90,10).
Deve-se prevenir aos principiantes, cujos atos de amor anagógicos não são ainda tão rápidos e instantâneos, nem tão fervorosos, para que consigam, de um salto, ausentar-se completamente dali (ou de si mesmos) e unir-se ao Esposo: se perceberem que apenas essa diligência não basta para esquecer por completo o movimento vicioso da tentação, não deixem de opor resistência, lançando mão de todas as armas e considerações que puderem, até que cheguem a vencê-la completamente.
Devem proceder do seguinte modo: primeiramente, procurem resistir, opondo os mais fervorosos movimentos anagógicos que lhes for possível e os ponham em prática, exercitando-se neles muitas vezes; quando isso não for suficiente, porque a tentação é forte e eles são fracos, aproveitem-se, então, de todas as armas de piedosas meditações e exercícios que julgarem necessários para conseguir a vitória. Devem estar persuadidos de que este modo de resistir é excelente e eficaz, pois encerra em si todas as estratégias de guerra necessárias e de importância.
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[1] CRUZ, São João da. Ditames de espírito, 44. in Obras completas. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
[2] Anagogia (grego ἀναγωγή) significa aqui a elevação da alma na contemplação das coisas divinas, derivada da meditação ou contemplação calma e profunda, que pode levar ao êxtase místico; um ser arrebatado do mundo cotidiano a alturas transcendentes, por entrega de amor e devoção.
Em Teologia pode significar também a interpretação mística dos símbolos, figuras e alegorias contidos nas Sagradas Escrituras, em obras literárias clássicas ou de inspiração religiosa; é uma palavra derivada do grego que sugere uma “subida” ou “ascensão” anagoge.
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